APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
As temáticas Ciência e Política tem se configurado como assuntos polêmicos no campo[1] de Educação Física, uma vez que expõem, fortemente, às lógicas de produção do conhecimento dos sujeitos que a praticam, realçando tensões e tradições de cunho epistemológico que se alicerçam em pressupostos teóricos e orientações filosóficas distintas e que podem entrar em conflito quando são trazidas ao debate.
Sobre esse assunto, o Departamento de Filosofia da McGill University, em prefácio à obra de Bunge (2009, p. 10), nos ajuda à elucidar essas questões ao ponderar que a
[...] natureza continua funcionando sem a ajuda das teorias científicas. Do mesmo modo as sociedades pré-industriais: crença, opinião e conhecimento especializado mas pré-teorético bastam-lhes. Mas um homem moderno não dispensa as teorias científicas a fim de avançar, seja em conhecimento, seja em ação. Suprimam toda teoria científica e a própria possibilidade de progredir ou mesmo de manter boa parte do que foi conseguido desaparecerá. Mas também: apliquem mal as teorias científicas e a própria humanidade pode chegar ao fim.
Nesse sentido, permite a reflexão sobre o papel da teoria, bem como do próprio fazer científico, no qual, a ciência contemporânea não se limitaria apenas à experiência, mas sim, estariam representadas pelos objetos enxergados à luz das estruturas epistemológicas que conferem sustentação às teorias. Assim, as teorias científicas seriam tão sutis e imaginativas quanto a própria ciência, na medida em que (re)inventam os objetos.
Não obstante, uma das temáticas abordadas neste livro, versa sobre a compreensão que as matrizes teóricas possibilitam aos objetos da área de Educação Física, na medida em que, nos termos de Certeau (1994), são reconfigurados pelas “artes de fazer” pesquisa por meio dos “usos e apropriações” das teorias, a partir de um reemprego coerente sobre o proprio objeto (ou não?).
Desse modo, as distintas práticas científicas no campo não se estruturariam com base na acumulação dos conhecimentos, mas sua compreensão pela aventura das hipóteses que se reinventam tais como os modelos teóricos aos quais estão submetidas, sejam eles galileanos, semânticos ou axiomáticos.
A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque de outro modo não haveria ciência. Mas não podem, por si só, determinar um conjunto específico de semelhantes crenças. Um elemento aparentemente arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos , é sempre um ingrediente formador das crenças esposadas por uma comunidade científica em uma determinada época (KUHN, 2009, p. 23).
Thomas Kuhn (2009), no debate sobre “estruturas das revoluções científicas”, nos traz a noção de que a ciência seria um tipo de atividade altamente determinada que consiste em resolver problemas dentro de uma unidade epistemológica denominada paradigma, que, mesmo com sua suficiente abertura, delimita os problemas a serem resolvidos em determinado campo científico. O paradigma estabelece o padrão de racionalidade aceito em uma comunidade científica sendo, portanto, o princípio fundamental de uma ciência para a qual são formados os cientistas.
Essa estrutura epistemológica determina a Ciência Normal, que somente se estabelece após um tipo de atividade desorganizada que tenta fundamentar ou explicar os fenômenos ainda em um estágio que Kuhn (2009) classifica de mítico ou irracional, denominado de pré-ciência. A Ciência Normal também ocorre pela ruptura e substituição de paradigmas, se instaurando, quando, dentro de um modelo, surgem anomalias ou antíteses que podem colocar em dúvida a validade da estrutura vigente. Uma vez o modelo tornando-se insuficiente para submeter as anomalias à teoria (já que vista de outro ângulo elas podem se tornar um problema) ocorre o que Kuhn (2009) denomina de Ciência Extraordinária ou Revolucionária, que nada mais é do que a adoção de um outro paradigma, isto é, de visão de mundo.
Sob o olhar de Bunge (2009), a noção paradigmática se estabeleceria na relação hipotética das explicações das realidades científicas que são cerceadas pela imaginação, mas que, ao mesmo tempo, não se eximem da necessidade de experimentação comprobatória ou aproximativa. Nesses processos, sejam sistemas de ciências mais “duras” ou em humanidades, onde os mecanismos de desenvolvimento não necessariamente precisam ser visualizáveis.
Essa estrutura tem refletido as próprias características da Educação Física brasileira que, alicerçada em sua “tradição” epistemológica, tem buscado explicar e “renovar” as práticas objetivadas no campo, por meio de teorias representacionais, instituindo modelos que se encontram referidos pelas próprias teorias ou tão somente nelas.
Nesses termos, como poderão ser vislumbradas nas páginas que se seguem neste livro, essas “crises paradigmáticas” ou “mudanças representacionais”, muitas vezes são geradas no campo da política, por fatores que extrapolam as relações da própria ciência (ao menos de uma visão romântica de ciência), tais como a disputa pela “real visão de mundo” em prevalência de um determinado conjunto de conhecimentos.
Esses embates visam à competição pela legitimidade de ser, ou vir a ser, a voz autorizada a ditar as regras do jogo, inventando tradições e constituindo reinados entre as fronteiras das províncias científicas. Os campos de batalha se pulverizam na incessante luta pelo espólio financeiro das agências de fomento, no periodismo científico, bem como nas mesas e nos anais dos congressos acadêmicos. Nessas disputas, muitas vezes parecem se confundir os papeis de “autores, editores e dos atores da ciência”,[2] o que, nos termos de Bachelard (1996), podem obstaculizar epistemologicamente o desenvolvimento do campo.
Na vanguarda desses embates, encontram-se as instituições científicas que se apresentam como “lugares estratégicos” (CERTEAU, 1994) para a circulação das vozes em consonância e dissonância no campo. Assim, quanto mais renome uma instituição tiver, mais valor ela agrega aos trabalhos veiculados sobre sua chancela, ao passo que esse processo contribui para a valorização da própria marca institucional. Desse modo, estar à frente desses lugares de poder é, de certa maneira, filtrar os discursos que ganham circulação em um determinado campo científico.
A leitura da tessitura formada pelo arcabouço da ciência, política e produção do conhecimento não é algo de fácil apreensão, uma vez que, essa busca pelo domínio epistemológico encontra-se pulverizada nos diversos veículos de comunicação científica presentes no campo, bem como nas instituições que os chancelam.
Nesse sentido, os estudos cienciométricos[3] e bibliométricos[4] têm configurado uma importante investida para o monitoramento da atividade científica, seu impacto e resultados, ao passo que se têm valido de ferramentas quantitativas e qualitativas que possibilitam avaliar os níveis de desenvolvimento alcançados por uma área de conhecimento, quais sejam: as taxas de produtividade dos pesquisadores, o potencial de crescimento das instituições e cursos e a determinação de escalas de prioridades para a distribuição de recursos em diversas áreas do conhecimento.
O processo de construção e desenvolvimento dos índices[5] de avaliação da produção acadêmica, sua utilização e consequências ocupam espaço de discussão desde a década de 1950.[6] Desde então, artigos têm sido publicados com o intuito de melhor compreender a avaliação da produção das diferentes áreas do conhecimento e, assim, entender a amplitude e a natureza das atividades de pesquisa desenvolvidas em diversos países e instituições. Os resultados apresentados por estudiosos da área permitem aquilatar o nível do conhecimento disponível, delinear políticas de desenvolvimento e investimento, conhecer as necessidades de pesquisadores, entre outros aspectos.
No caso da Educação Física, o Proteoria é um grupo de pesquisa que tem, como uma de suas linhas, a investigação da produção teórica de impressos, especialmente aqueles publicados em formato de revistas, da área de Educação e de Educação Física.
Na linha de “Comunicação e Produção Científica em Educação e Educação Física” o grupo produziu algumas dissertações e teses, tais como as de Schneider (2003 e 2007), Ventorim (2005), Corte (2009), Nascimento (2010), Santos (2010) e Carneiro (2011). Pesquisas essas que buscaram contribuir com o debate sobre a constituição histórica e epistemológica da área de Educação e Educação Física no Brasil.
Especificamente, as teses de doutoramento de Ventorim (2005) e Santos (2010) e a dissertação de Carneiro (2011) é que guardam mais similaridade com a proposta deste livro, uma vez que, nos trabalhos desses autores, as argumentações foram elaboradas com base em dados produzidos por meio de uma análise aprofundada em anais de congressos científicos, quais sejam: Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino (ENDIPE), e dos anais dos congressos da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPED), já o último, dedicou-se, especialmente, em enveredar-se pela produção do conhecimento no Colégio Brasileiro de Ciências de Esporte (CBCE).
A proposta deste livro se origina da trajetória acumulada pelo grupo, de modo que foi construído tomando como base a racionalidade desses trabalhos, bem como dos excertos reunidos em Ferreira Neto (2005), onde os autores convidados ao debate ressaltam o CBCE como um lugar de disputa de poder e legitimidade. Assim, pondera que os entendimentos das práticas de pesquisa chanceladas pela instituição se dão, impreterivelmente, por meio de uma análise da produção veiculada na Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE) e nos Congressos Brasileiros de Ciências do Esporte (CONBRACEs), uma vez que, elas são as instâncias representativas dos ideais políticos e científicos das lideranças gestoras da instituição.
Para desenvolver o estudo e enfrentar os desafios propostos nesta pesquisa, o livro encontra-se organizado da seguinte maneira: introdução, quatro capítulos, considerações finais e referências.
Na introdução fez-se a contextualização do tema, de maneira a apresentar o processo de constituição e desenvolvimento do objeto e das fontes ora investigados. No primeiro capítulo tratamos de dar à vista para o leitor o desenvolvimento da operação de caça necessária para fazer aparecer o aparelho crítico dos trabalhos do GTT Escola. Nesse movimento, apresentamos as relações de força de sua fabricação, enfatizando a elaboração do arcabouço teórico-metodológico utilizados nas análise dos anais dos CONBRACEs.
Operamos com as ferramentas da historia cultural francesa e a micro-história italiana, indagando as fontes por meio de uma relação de “idas e vindas” entre o “objeto cultual e às relações macrossociais”. Nesse capítulo, também é apresentado o banco de dados desenvolvido, bem como a forma de operacionalização do Instrumento de Coleta de Dados. São, ainda, trazidos ao debate os estudos que se propuseram investigar o CBCE na condição de objeto e fonte, na tentativa de evidenciar as tensões dos discursos entre aqueles que falam pela instituição e os que falam sobre essa entidade.
No segundo capítulo, compreendemos as ações que possibilitam aos organizadores e editores dos anais dos CONBRACEs construírem sentidos para essa produção. Realizamos a interpelação da fórmula editorial de cada suporte de leitura utilizado para os anais de cada um dos congressos realizados no período compreendido entre 1997 e 2009. Cada elemento constituinte da (i)materialidade desses documentos[7] foram tomados como vestígios das práticas operadas no interior do CONBRACE, possibilitando ao leitor visualizar o aparelho crítico dos anais
Após apresentarmos e compreendermos a ação do aparelho crítico construído para os documentos em análise realizamos um mergulho nos trabalhos do GTT Escola. Assim, desenvolvemos o capítulo três seguindo os “indícios”[8] e os ordenamentos dos protocolos de leitura deixados pelos autores dos trabalhos, mas não os consumindo como única maneira de leitura dessas fontes.
Os documentos produzidos com base nessa apropriação permitiram a visualização do tecido formado pelas produções do GTT, demonstrando as presenças e ausências existentes nas tramas da história dessa comunidade científica. A apresentação das informações seguiu os modos de organização dados a ver nos trabalhos, a saber: informações existentes nos cabeçalhos dos estudos como tipo de autoria, titulação, vínculo a grupos de pesquisa, instituição e a procedência regional dessas produções.
Por fim, no quarto capítulo, discutimos a constituição epistemológica dos trabalhos. O olhar para a tipologia científica sinalizou as práticas de pesquisa postas em circulação no campo, além de, ressaltar os processos de continuidade e descontinuidades da história do GTT Escola dos CONBRACEs de 1997 a 2009.
Em resumo, o tema deste livro é delicado e polêmico, ao mesmo tempo em que é extremamente profícuo para o desenvolvimento acadêmico, político e científico do campo de Educação Física, uma vez que, coloca em análise algumas das tradições cristalizadas na área, permitindo reflexões (im)pertinentes sobre seus próprios fazeres científicos.
[1] O campo científico “[...] é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida [...], que é socialmente outorgada a um agente determinado” (BOURDIEU, 1983, p. 122-123). Em suma, é o lugar da disputa pela legitimidade acadêmica, da busca por ser a voz autorizada e com autoridade de formar e conformar as práticas científicas de uma área do conhecimento.
[2] Ver Schneider (2010).
[3] Cienciometria é o estudo dos aspectos quantitativos da ciência enquanto uma disciplina ou atividade econômica.
[4] Bibliometria é o estudo dos aspectos quantitativos da produção, disseminação e uso da informação registrada.
[5] Como mostra Meho (2007), o índice h (h-index), o índice a (a-index) e o índice g (g-index).
[6] Esse processo vem se aprimorando (Curti et al., 2001; Garfield, 1955, 1999; Meho, 2007; Santos et al., 2012)
[7] Capas, contracapas, sumários, número de páginas, alocação dos elementos textuais dos trabalhos, etiquetas e capas dos CDs, softwares utilizados para acessar os trabalhos.
[8] Segundo Ginzburg (1988), os indícios se caracterizam como pormenores que muitas vezes são negligenciados, mas que, com base em uma análise criteriosa, podem atribuir novos sentidos aos objetos.