SCHNEIDER, O.; BUENO, J. S. A relação dos alunos com os saberes compartilhados nas aulas de Educação Física. Movimento, Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 23-46, jan./abr. 2005.
A RELAÇÃO DOS ALUNOS COM O SABER COMPARTILHADO[1]NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Omar Schneider (*)
José Geraldo Silveira Bueno (**)
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo dar prosseguimento a uma série de análises realizadas no ano de 1999, e que se referem à pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo. Investigação que procurou mapear a situação da Educação Física no Estado. Nessa nova investida, discutiremos duas questões que fazem parte de um questionário com 17 perguntas aplicadas aos alunos do ensino médio da Rede Pública da Região da Grande Vitória, focalizando, especialmente, a questão nº 3 (Vocêgosta das aulas de Educação Física? Por que?) e à questão nº 5 (O que você faz e aprende nas suas aulas de Educação Física? O que o seu professor ou professora mais ensina?). Utilizando como referência os estudos de Charlot (2000 e 2001), em relação às figuras do aprender, buscamos propor uma nova análise a essa parte dos dados. Para tanto, voltamos a atenção para os saberes que os alunos reconhecem como os que foram compartilhados pela Educação Física durante o processo de escolarização. Com base nessa referência teórica, pudemos problematizar esta relação, em termos da distinção entre saber-objeto, saberes de domínio e saberes relacionais, estes dois últimos muito presentes nas aulas de educação física, mas muito pouco privilegiados como objetos de pesquisa.
Palavras-chave: Educação Física; saberes escolares; relações com o saber
Apresentação
Entre os anos de 1997 e 1999, foi realizado no Estado do Espírito Santo um amplo inquérito sobre a situação da Educação Física nas escolas que compõem a Rede Estadual de Ensino. A investigação foi denominada Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.[2] Nessa investigação, foram recolhidas informações sobre o imaginário[3] dos professores de Educação Física, dos alunos, dos diretores das escolas em relação a essa disciplina e também sobre os materiais utilizados nas aulas de Educação Física, os livros encontrados nas bibliotecas das escolas sobre a Educação Física, os materiais didáticos e as instalações físicas das escolas direcionadas a essa atividade pedagógica.
A pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo, de caráter descritivo, valeu-se de técnicas quantitativas e qualitativas e, para a realização da investigação constituiu-se a amostra da seguinte forma:
- o Estado do Espírito Santo foi dividido em três regiões: Norte/Noroeste, Sul e Região Metropolitana da Grande Vitória;
- nessas regiões, os municípios considerados de grande porte, com mais de cem mil habitantes, contribuíram na amostra com cinco escolas, sendo uma dessas selecionada intencionalmente pelos critérios de maior número de alunos, maior tradição e importância na comunidade; as outras escolas foram sorteadas;
- os municípios de médio porte (acima de 30 mil habitantes) contribuíram com duas escolas, sendo uma escolhida pelos critérios já descritos e a outra sorteada;
- além disso, foram sorteadas entre os outros municípios (todos com menos de 30 mil habitantes), dez escolas da Região Norte/Noroeste e cinco da Região Sul, sendo a principal escola desses municípios incluída na amostra.
Combase nesses critérios, a amostra final ficou constituída de 62 escolas.
O material coletado na pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo possibilitou a produção de cinco textos, que buscaram tematizar algumas das dimensões abarcadas pela investigação, enfocando os seguintes aspectos:
1) o imaginário social do professor;
2) os aspectos organizacionais e físicos;
3)o imaginário social dos diretores em relação à Educação Física;
4) quemé o professor de Educação Física; e
5)o imaginário social dos alunos.
O Diagnóstico da Educação Física no Estado do Espírito Santo
O propósito da escrita deste artigo não é fazer uma crítica à pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo, nem desaprovar seus resultados, pois muitas das conclusões desenvolvidas condizem com a realidade da Educação Física no Estado do Espírito Santo. Entretanto, apesar dessa observação, alguns dos dados requerem uma nova análise, entre eles os que dizem respeito aos que foram produzidos a partir dos questionários aplicados aos alunos e alunas do ensino secundário.
Para apresentar as principais conclusões da pesquisa Diagnóstico, busca-se, neste momento, sintetizar as análises realizadas, as discussões encaminhadas e veiculadas nos cinco relatórios produzidos a partir da investigação.
Um dos relatórios tratou doimaginário social do professor e objetivou reconhecer, por meio da fala dos entrevistados, os modos como eles (professores) justificam a importância da Educação Física na escola. Os principais resultados indicaram: os professores de Educação Física justificaram a importância dessa disciplina na escola vinculada especialmente ao “desenvolvimento do aluno”, à “socialização” e à “educação interdisciplinar”; nessas três principais justificativas, a pesquisa apontou que os professores revelaram impossibilidade de perceber a especificidade da Educação Física como um componente curricular, que o esporte continua sendo a principal referência de conteúdo que os professores afirmaram ensinar, seguido da recreação e das noções de saúde.
A importância de ensinar tais conteúdos relacionou-se, em especial, com “continuidade da prática de atividades esportivas”, “desenvolvimento do aluno”, “socialização”, “conhecimento para vida”. Uma parcela de professores, por possuírem muita experiência profissional, afirmou que fazem o planejamento, mas não viam importância nessa tarefa. Muitos professores apontaram que utilizavam livros e apostilas para preparar suas aulas, sem, entretanto, mencionarem as referências bibliográficas. Uma parcela de professores citou algum tipo de referência, caracterizado como manuais de aula assim como não houve menção de bibliografia vinculada aos fundamentos teóricos da educação. Uma outra parcela declarou não utilizar livros, apostila ou qualquer material, pois acredita que a experiência lhe basta. Esses elementos, produzidos pela pesquisa Diagnóstico, de acordo com os investigadores, permitiu considerar que os professores de Educação Física das escolas estaduais do Espírito Santo estabelecem um certo estranhamento com facetas de seu próprio trabalho pedagógico (DIAS et al., 1999).
No segundo relatório, buscou-se discutir os aspectos organizacionais e físicos destinados às aulas de Educação Física e como esses fatores influenciavam a atividade pedagógica do professor dessa disciplina. Após analisar os dados coletados na pesquisa chegou-se ao seguinte resultado: o papel dos materiais, equipamentos e instalações foi considerado importante e necessário para o fazer corporal nas aulas de Educação Física em quaisquer perspectivas em que os professores se pautavam. Em virtude disso, consideraram que a ausência ou insuficiência de materiais e instalações poderia comprometer o alcance dos objetivos propostos pelo professor. Os investigadores, entretanto, consideraram, no entanto, que outros aspectos deviam ser considerados determinantes para que houvesse uma prática qualitativa nas aulas, embora muitos professores justificassem sua incapacidade pedagógica pela carência de tais estruturas (DIAS et al., 1999).
A terceira análise realizada tomou como referência o imaginário social dos diretores em relação à Educação Física. Para dar conta de tematizar essa relação com a Educação Física nas escolas visitadas, buscou-se compreender o entendimento que esses agentes possuíam a respeito de currículo, sua visão em relação à Educação Física e os esportes, o modo como avaliavam a Educação Física nas instituições em que trabalhavam e as sugestões que poderiam realizar para melhorar o quadro dessa matéria na escola. Em relação ao entendimento sobre o currículo, constatou-se que os diretores possuíam uma visão conservadora, na qual a Educação Física manifestava-se como atividade predominantemente socializadora, em que a criança aprenderia a ganhar e a perder e a superar as dificuldades do dia-a-dia. Com referência à avaliação que realizavam sobre a Educação Física, deixaram claro que as instalações possuíam papel preponderante na qualidade das aulas: possuir ou não materiais e espaços adequados foi considerado, pelos diretores, elemento que influenciava positivamente ou negativamente a condução das atividades realizadas pela Educação Física, ficando em segundo plano os conteúdos, procedimentos pedagógicos ou didáticos utilizados pelo professor. As sugestões para a melhoria da qualidade das aulas relacionaram-se, principalmente, com a melhoria do quadro docente, por meio de eventos de aperfeiçoamento (reciclagens dos professores de Educação Física) (DIAS et al., 1999).
A quarta incursão nos dados, produzida a partir da pesquisa Diagnóstico, buscou compreender quemé o professor de Educação Física. Dos 54 professores entrevistados na pesquisa, constatou-se que 37 possuíam licenciatura plena em Educação Física e 27,1% destes tinham concluído o curso de graduação na década de 1970, 40,5% na década de 1980, 16,2% na década de 1990 e 16,2% não responderam. Dos 37 professores que possuíam licenciatura plena, 22 tinham concluído uma pós-graduação (especialização) e dois estavam em fase de conclusão. Dos 54 professores entrevistados, 20 não alternavam as atividades que exerciam nas escolas em que foram entrevistados com as que praticavam em outros estabelecimentos de ensino ou academias. A investigação demonstrou também que o conhecimento dos professores a respeito das propostas educacionais progressistas da Educação Física era precário, uma vez que a maioria havia se formado em um momento em que essas discussões ainda não tinham aflorado na área, o que explicava a impossibilidade constatada de os professores discorrerem sobre as pedagogias críticas ou acompanhar o debate acadêmico instaurado na Educação Física desde meados da década de 1980 (DIAS et al., 1999).
A quinta sistematização realizada a partir dos dados da pesquisa Diagnóstico buscou, com base em um questionário aberto, desvelar o imaginário social dos alunos. Na investigação, foi aplicado questionário com questões abertas a 632 alunos da rede pública de ensino, do ensino fundamental e médio.[4] Os questionários para cada nível de ensino tinham distinções no número e no teor das questões: o questionário endereçado aos alunos do ensino fundamental continha sete perguntas e no aplicado aos alunos do ensino médio, o número de perguntas subiu para 17. Percebeu-se que o entendimento que os alunos do ensino fundamental possuíam sobre a função da Educação Física estava fortemente ligado às idéias do aprendizado esportivo e do desenvolvimento físico-corporal. Muitos desses percebiam a Educação Física como o espaço para brincar. Para os alunos do ensino médio, o entendimento da Educação Física como espaço de socialização ficou bem reforçado. Em relação ao que os alunos do ensino médio aprenderam na disciplina Educação Física nos oito anos de escolarização, chegou-se a seguinte conclusão: as aulas de Educação Física não fizeram com que esses alunos se apropriassem minimamente de um conhecimento que permitisse um entendimento que superasse o senso comum; o entendimento presente entre os alunos pareceu ser resultado apenas de uma recepção a-crítica do que se veiculava pelos meios de comunicação, isto é, as aulas de Educação Física pareceram não influenciar o nível de conhecimento sobre os conteúdos que os alunos possuíam em relação a essa área. (DIAS et al., 1999).
Esses são alguns dos principais pontos abordados nos relatórios que foram produzidos a partir da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
O Diagnóstico da Educação Física no Estado do Espírito Santo: novas possibilidades de problematização – em foco os alunos e sua relação com o saber
Para esta incursão sobre os dados produzidos pela pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo, delimita-se, como foco de análise, parte dos questionários aplicados aos alunos do ensino médio no momento da investigação. Nesta nova tematização proposta, o objetivo é retomar algumas questões que ainda não foram trabalhadas suficientemente nos materiais já produzidos. Aos alunos do ensino médio foi aplicado um questionário aberto contendo 17 perguntas que tinham como objetivo captaro seu imaginário em relação à Educação Física ou, mais precisamente, verificar que relação os alunos mantinham com a disciplina Educação Física e com os saberes por ela distribuídos.
Nessa nova investida, para o desenvolvimento do estudo, concentrou-se em duas perguntas do questionário, a questão nº 3 (Vocêgosta das aulas de Educação Física? Por quê?) e a questão nº 5 (O que você faz e aprende nas suas aulas de Educação Física? O que o seu professor ou professora mais ensina?). Paraa produção deste artigo, não foram utilizados todos os questionários respondidos pelos 202 estudantes do ensino médio que participaram da pesquisa, mas foi selecionada amostra de 50 alunos[5] que estudavam naquele período em seis escolas, de três cidades, que compõem a área conhecida como Região Metropolitana da Grande Vitória.[6] Cabe informar que a escolha da amostra para a produção desse artigo foi obtida com base em uma seleção randômica.[7]
Comomostra a Tabela 1, a seguir, dos questionários utilizados, 28 foram conseguidos em três escolas da região da Ilha de Vitória, 11 questionários foram obtidos em uma escola da região de Vila Velha e mais 11 foram conseguidos em duas escolas da região da Serra.
Tabela1 – Número de alunos por região
Regiões |
Número de alunos |
Total |
||||
Vitória |
6 |
6 |
16 |
28 |
||
Vila Velha |
11 |
- |
- |
11 |
||
Serra |
6 |
5 |
- |
11 |
||
Total |
23 |
11 |
16 |
50 |
||
Fonte: Base de dados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
Entreos 50 alunos entrevistados, apenas um assistiu aulas de Educação Física em apenas um ano de escolarização; seis tiveram dois anos dessa disciplina; quatro tiveram três anos de Educação Física na escola; nove alunos tiveram quatro anos de aulas de Educação Física; nove alunos fizeram também durante cinco anos; seis tiveram durante seis anos; três durante sete anos e 11 alunos tiveram regulamente a disciplina Educação Física durante o ensino fundamental.[8] Percebe-se que nenhum aluno entrevistado deixou de ter acesso, em maior ou menor grau, aos conteúdostratados pela Educação Física. Resta, assim, saber o que os alunos conseguiram aprender/sistematizar do que foi ensinado.
Para a presente análise, principalmente no que diz respeito à relação dos alunos com os saberes compartilhados na Educação Física, utilizou-se como ponto de partida as reflexões de Charlot (2000), principalmente quando este autor busca discutir as possibilidades da passagem de uma leitura negativa, para uma leitura positiva quando se busca discutir a relação dos saberes e as situações de fracasso escolar. Para Charlot (2000), as teorias sociológicas vêem há muito tempo realizando uma leitura negativa sobre o processo de escolarização. Desde teorias mais reconhecidas, como a produzida por Pierre Bourdieu em relação à reprodução, até as que se baseiam mais no senso comum, que insistem em explicar as diferenças em termos de dons, tem-se sempre perguntado pelo que os alunos não sabem, o que eles não conseguiram sistematizar, o que eles não conseguiram aprender, ou seja, o que lhes falta.
Conforme Charlot (2000, p. 30), “[...] praticar uma leitura positiva[9] é prestar atenção também ao que as pessoas fazem, conseguem, têm e são, e não somente àquilo em que elas falham e às suas carências”. Para o autor, essa forma de inquirir a realidade escolar “[...] é antes de tudo uma postura epistemológica e metodológica” (CHARLOT, 2000, p. 30). Essa nova postura do pesquisador ante a realidade escolar proporciona que se interrogue sobre os dados da pesquisa, perguntado não só pelos conhecimentos adquiridos ao lado das carências, mas também visando a proporcionar que se leia de “[...] uma outra maneira o que é lido como falta pela leitura mais negativa” (CHARLOT, 2000, p. 30).
Ao analisar as respostas dos alunos para as questões (Vocêgosta das aulas de Educação Física? Por quê? O que você faz e aprende nas aulas de Educação Física? O que o seu professor ou professora mais ensina?), pode-se perceber que esboçaram dois tipos de reações: uma que pode ser qualificada como mais positiva e outra como mais negativa frente ao que é ensinado e o que é aprendido nas aulas de Educação Física. As respostas que se percebem como mais positivas relacionam-se com a aprendizagem dos esportes, as suas regulamentações, os exercícios para aprendizagem e as regras de convivência que tais práticas proporcionam. Entre as respostas mais negativas, encontram-se aquelas que julgam por contraste o que deveria ser ensinado/aprendido durante a aula de Educação Física. No Quadro 1, a seguir, busca-se organizar as respostas dos alunos em relação ao conteúdo aprendido nas aulas de Educação Física.
Quadro1 – Reação dos alunos frente ao aprendizado nas aulas de Educação Física
Questão 5
O que você faz e aprende nas aulas de Educação Física? O que o seu professor ou professora mais ensina? |
Respostapositiva |
Respostanegativa |
Aprendo: Vôlei, handebol, futebol/Vôlei, um pouco de cada coisa/Natação/Vôlei, todos os esportes/Regras do jogo, educação/Exercícios para postura, regras dos jogos, limites, competição/Como se deve jogar/aprendo a gostar dos esportes/Ensinam os fundamentos e as regras/A não ultrapassar os limites físicos/A não querer mostrar que é melhor que o outro/A ter paciência/A simplicidade |
Nada/Na verdade o nosso professor não ensina nada/Não sei/Apenas nos manda jogar/É uma continuação do que já sei/O professor ultimamente não ensina muito, só deixa a bola/A maior parte do tempo não ensina nada/O professor não ensina a parte teórica dos esportes/fazem discriminação – esporte para meninos e esporte para meninas/Apenas entrega a bola e manda jogar/Nada além do que já sei |
Fonte: Base de dados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
Com base nessa classificação, construímos a Tabela 2:
Tabela2 – Qualidade das respostas dos alunos frente ao aprendizado das aulas de Educação Física
Sexo |
Respostaspositivas |
Respostasnegativas |
||
Quantidade |
Proporção |
Quantidade |
Proporção |
|
M |
11 |
0.38 |
11 |
0.61 |
F |
18 |
0.62 |
07 |
0.39 |
T |
29 |
1.00 |
18 |
1.00 |
Fonte: Base de dados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
Obs.: três alunos (proporção de 6%) declararam não assistiraulas de Educação Física nos anos em que a pesquisa estava sendo realizada.
Comose pode perceber, um número significativamente maior de alunos (29) afirmaram aprender nas aulas de Educação Física, em relação àqueles que disseram que essas aulas, nada ou quase nada, acrescentaram ao que já haviam aprendido fora dela (18), incluindo não só conteúdos específicos (como aprender a jogar, regras de jogos, etc), mas também padrões de conduta e de comportamento.
Mas comparando os que dizem aprender e os que dizem não aprender, algo chama a atenção. No grupo que diz não aprender nada, a maior parte (proporção de0.61) é composto por alunos do sexo masculino; os outros (proporçãode 0.39) são de alunas. Já no grupo que produz respostas que podem ser consideradas como positivas em relação ao aprendizado, a situação evidenciada no grupo anterior se inverte. Mais alunas (proporção de 0.62) aparecem respondendo afirmativamente que estão aprendendo nas aulas de Educação Física, enquanto menos alunos (proporção de 0.38) podem ser enquadrados nessa categoria.
Uma possibilidade de investigação que se depreende dessa constatação diz respeito à necessidade de se examinar a relação das alunas e dos alunos com os saberes compartilhados pela Educação Física na escola. É possível que existam diferentes formas de relação com o saber, o que faz com que as alunas consigam perceber de forma mais positiva o seu aprendizado em relação aos saberes ensinados nas aulas de Educação Física. Uma possibilidade de resposta (mas que precisa ser testada por uma pesquisa que se volte exclusivamente para essa questão) talvez seja porque esse espaço se constitua em um dos poucos locais em que tenham maior acesso aos elementos da cultura corporal de movimento, como os esportes e os jogos.
Ao analisar as respostas da questão número 5 (O que você faz e aprende nas aulas de Educação Física? O que o seu professor ou professora mais ensina?) e destacar as reações que são produzidas pelos alunos e alunas, é possível mais um questionamento, qual seja: existe alguma relação entre a reação positiva e a reação negativa dos alunos e o número de anos que tiveram aulas de Educação Física? A Tabela3, a seguir, permite visualizar algumas conexões entre os tipos de reações que os alunos manifestaram ao serem confrontados com a questão número 5, levando-se em conta a relação ao sexo dos estudantes.
Tabela3 - Relação entre tipo de resposta, sexo e anos de aulas de Educação Física
Nº de anos |
Masculino |
Feminino |
Total |
|||
Positiva |
Negativa |
Positiva |
Negativa |
Positiva |
Negativa |
|
1 ano |
1 |
- |
- |
- |
1 |
- |
2 anos |
3 |
1 |
1 |
1 |
4 |
2 |
3 anos |
- |
1 |
3 |
- |
1 |
3 |
4 anos |
3 |
1 |
5 |
- |
8 |
1 |
5 anos |
2 |
2 |
3 |
2 |
5 |
4 |
6 anos |
3 |
- |
2 |
1 |
5 |
1 |
7 anos |
- |
1 |
1 |
1 |
1 |
2 |
8 anos |
1 |
5 |
3 |
2 |
4 |
7 |
Total |
13 |
11 |
18 |
7 |
29 |
20 |
Fonte: Base de dados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
Obs.: um aluno não respondeu à questão 8 - olhando para trás, para o 1. grau, já foram 8 anos de Escola. Em quantos destes anos você teve realmente aulas regulares de Educação Física? Coloque X apenas nos anos em que você teve aulas
Examinando as informações contidas na Tabela 3, alguns dados chamam atenção, um deles se relacionando com os anos em que os alunos/alunas tiveram aulas de Educação Física e as suas respostas à questão número 5: pode se dizer que a reação que pode ser considerada mais positiva frente ao aprendizado, concentra-se em alunos com uma duração média de número de anos de aula de Educação Física na escola - entre 4 a 6 anos = 18 (8+5+3) - contra 5 que tiveram aulas entre 1 e 3 anos e 5, ou entre 7 e 8 anos; isto é, os dados parecem apontar para uma situação interessante que talvez merecesse ser investigada: muito ou pouco tempo de aulas redundaram, tendencialmente, em visão negativa, enquanto que um número mediano (4 a 6 anos de aula), em avaliação positiva. Por um lado, o pouco tempo de aulas pode ser interpretado como insuficiente para que os alunos conseguissem criar uma imagem mais positiva do trabalho realizado na disciplina e, por outro, o “excesso” parece levar a uma desvalorização das atividades realizadas.
Quandoanalisamos a relação entre os anos de Educação Física na escola e o sexo dos alunos, constatamos que as diferenças entre sexo e anos de aulas parecem não ser significativas, pois a distribuição é relativamente similar entre ambos os sexos, com duas exceções:
- a mais significativa delas diz respeito aos alunos com 8 anos de aulas de educação física: enquanto 5 alunos tenderam para uma avaliação negativa, contra apenas 1 com resposta positiva, apenas 2 alunas apresentaram respostas negativas contra 3 positivas;
- a outra se refere aos alunos com 4 anos de aulas de Educação Física: enquanto 5 alunas responderam de forma positiva e nenhuma apresentou uma visão negativa, os alunos se distribuíram de forma diferente: 3 com respostas positivas e 1 com resposta negativa.
Assim, parece que um número mediano de anos de aula foi significativo para que as alunas conseguissem valorizar a Educação Física, assim como o número elevado de anos de aula de Educação Física redundou em desvalorização das práticas realizadas, porparte dos alunos.
A distribuição aleatória, com concentração mais evidente apenas nos alunos que tiveram 8 anos de aulas de Educação Física, parece reforçar a tese do “excesso” de anos como pouco positivo. A nosso juízo, entretanto, não se pode cair na conclusão simplista de diminuição dos anos de aula de Educação Física para sua valorização, sem que pesquisemos que práticas são desenvolvidas, cuja reiteração e falta de diversificação podem levar a essa perspectiva de desvalorização.
A Tabela 4, que será discutida mais a frente, responde de maneira mais detalhada a essa questão, pois discute os motivos pelos quais os estudantes justificam seu interesse ou desinteresse pelas aulas de Educação Física.
Ainda que perspectivando os dados da Tabela 3 na direção de uma percepção que aponta uma reação mais negativa, quanto mais se aumenta ou se diminui o número de anos em que os alunos e alunas afirmam ter tido a Educação Física como disciplina escolar, pode-se perceber que o número maior de anos dessa matéria no currículo das alunas fez com que tivessem uma reação um pouco diferente das dos alunos.Ao queparece, a oferta da Educação Física como disciplina escolar propiciou às alunas, de forma mais sistematizada, o acesso aos saberes relacionados com o esporte, conhecimentos que talvez não teriam adquirido, caso não tivessem passando pelo processo de escolarização. Mas haveria que se perguntar: a reação positiva demonstrada pelas alunas em relação ao seu aprendizado ocorre também com as outras disciplinas, ou é relativa exclusivamente à Educação Física? Estudos vêm demonstrando que as alunas têm obtido maior sucesso escolar, quando seu rendimento é comparado com o dos alunos. Lahire (1997), ao discutir sobre o sucesso escolar em meios populares na França, traz uma informação interessante. Ao constituir a amostra de 27 estudantes que participariam de sua pesquisa, constata que 14 alunos podiam ser considerados em situação de fracasso escolar, dos quais cinco eram meninas e nove eram meninos. Já com os 13 estudantes considerados em situação de sucesso escolar, a situação era inversa, oito eram meninas e cinco eram meninos.
Olhonelas: escolas mistas entram na mira de educadores preocupados com a desvantagem no desempenho dos meninos. Com esse título a Revistada Folha, veiculada no dia 4 de maio de 2003, busca chamar a atenção para esse novo problema educativo. Como mostram algumas das reportagens veiculadas nesse número, essa é uma nova questão que se descortina e que não pode ser creditada às desigualdades sociais, uma vez que o mesmo fenômeno também está sendo observado nos países mais ricos. Na reportagem intitulada O novo sexo frágil, observa-se que os meninos e as meninas se desenvolvem e aprendem de forma diferente, assim como os saberes distribuídos pela escola são incorporados por eles e por elas também em ritmos diferentes.
A discussão sobre a relação que os(as) estudantes desenvolvem com os saberes escolares é tema que deve ser levado em conta, quando se discute questões relacionadas com as situações de sucesso e fracasso escolar, já que essas relações são importantes para se compreender os motivos pelos quais os estudantes avaliam positivamente ou negativamente seu aprendizado.
Quando perguntados sobre se gostavam das aulas de Educação Física e o motivo, os alunos, em sua maioria, declararam que sim. Mesmo aqueles que disseram não gostar dessa disciplina, como pode ser verificado no Tabela 4, não se pronunciaram no sentindo de que ela deveria ser extinta da grade curricular, mas sugeriram que deveria ser melhorada, tanto em relação ao conteúdo oferecido, quanto em função de uma melhor organização, para uma boa aprendizagem.
Abaixo, apresentamos o Quadro 3, em que são classificadas as respostas a essa questão:
Quadro 2 – Motivos pelos quais os alunos justificam o interesse ou desinteresse pala Educação Física
Questão3Vocêgosta das aulas de Educação Física? Por que? |
Sim |
Não |
Jogarde forma mais organizada e aprender algumas leis básicas do esporte/Serve para distrair e fazer a prática dos esportes/Gosto pelo divertimento/Quase sempre ficamos sentados na sala de aula/São momentos para relaxar/Distrair das outras matérias/Estimulam o trabalho de equipe/Integração da turma/ Descontração/Maneira mais fácil de entrosar – fazer amigos/Proporciona conhecimento, lazer e relações humanas |
Faltainfra-estrutura/Aulas tumultuadas/As aulas são desorganizadas/Falta opções/As aulas não incentivam a nada/Não dão chance para que o aluno escolha as atividades |
Fonte: Base de dados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
Com base nessa classificação, construímos a Tabela 4:
Tabela4 - Interesse ou desinteresse pelas aulas de Educação Física, por sexo dos alunos
Sexo |
Interesse |
Desinteresse |
||
Quantidade |
Proporção |
Quantidade |
Proporção |
|
M |
21 |
0.53 |
04 |
0.40 |
F |
19 |
0.47 |
06 |
0.60 |
T |
40 |
1.00 |
10 |
1.00 |
Fonte: Base de dados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo.
Perguntar pelos motivos em razão dos quais os alunos justificam o interesse ou desinteresse pala Educação Física pode se constituir como um ponto para auxiliar a responder a tão debatida questão da legitimidade da Educação Física no ambiente escolar e sua justificativa como componente curricular. Questionar sobre o interesse ou desinteresse dessa disciplina para os alunos pode revelar o sentido que a ela é atribuída e o que os alunos compreendem como os saberes que deveriam ser tematizados/ ensinados nas aulas de Educação Física.
Os dados da Tabela 4 revelam que um número significativo (40 contra 10) de alunos, incluindo os que três que naquele ano afirmaram não assistir aulas de Educação Física na escola, expressou, nas suas respostas, as qualidades que atribuem a essa disciplina. Os motivos pelos quais avaliam a necessidade e a função da Educação Física na escola possuem pontos em comum: de um lado, estão aqueles que indicam que ela deve cumprir o papel de possibilitar aos alunos entrar em contato de forma mais organizada com os esportes e suas regras e, de outro, os que acreditam que o espaço e o horário das aulas de Educação Física é o local e o momento em que poderão ter lazer e intensificar as relações humanas.
Como facetas de uma mesma moeda, uma coisa não exclui a outra, uma vez que, no momento do jogo, as regras atingem todos os jogadores igualmente, as decisões necessariamente têm que ser acordadas em conjunto para que as estratégias de ataque e defesa façam algum sentido durante a partida. Essa situação de diálogo, nas quais os alunos têm que se inserir, para definir posições e estratégias no jogo, é descrita por eles como entrosamento, estímulo ao trabalho de equipe ou mesmo integração.
Ao discutir sobre as figuras do aprender, Charlot (2000, p. 66) indica que existem quatro formas delas se manifestarem:
- uma possui relação com objetos-saberes, objetos nos quais os saberes estão incorporados, como nos livros, nas obras de arte, etc.;
- outratem a ver com objetos cujo uso deve ser aprendido, como amarrar o cadarço de um sapato, até os mais elaborados, como usar o computador;
- existe também a figura que se projeta em atividades a serem dominadas, as quais possuem estatutos variados, como ler, nadar ou desmontar um motor; e por último,
- a figura do aprender que se manifesta em dispositivos relacionais, como saber se portar socialmente, os quais só podem ser apropriados na relação com o outro.
De acordo com o autor (p. 66),
[...] ante esses objetos, essas atividades, esses dispositivos e formas, o indivíduo que ‘aprende’ não faz a mesma coisa; o aprendizado não passa pelos mesmos processos. Existe aí um problema cuja dimensão não é apenas cognitiva e didática. A questão é mais radical: aprender será exercer que tipo de atividade?
Respondendo a essa indagação, informa o autor que,
[...] do ponto de vista epistêmico, aprender pode ser apropriar-se de um objeto virtual (o ‘saber’), encarnado em objetos empíricos (por exemplo, os livros), abrigado em locais (a escola...), possuído por pessoas que já percorreram o caminho (os docentes...). Aprender então, é ‘colocar coisas na cabeça’, tomar posse de saberes-objetos, de conteúdos intelectuais que podem ser designados, de maneira precisa (o teorema de Pitágoras [...]), ou imprecisa (‘na escola, se aprende um montão de coisas’). Aprender é uma atividade de apropriação de um saber que não se possui, mas cuja existência é depositada em objetos, locais, pessoas (CHARLOT, 2000, p. 68).
Essas relações epistêmicas com o saber, conforme Charlot (2000), inscrevem-se de duas maneiras: uma em que o saber assume forma de objeto, principalmente por meio da linguagem escrita, e outra em que o saber se concretiza por meio do domínio de uma atividade, ou no capacitar-se a utilizar um objeto de forma pertinente, ou seja, do não-domínio ao domínio. Domínio esse, segundo o autor, que se inscreve no corpo. Citando Merleau-Ponty, Charlot (2000, p. 69), afirma que “[...] o corpo é o lugar de apropriação do mundo, um ‘conjunto de significações vivenciadas’, um sistema de ações em direção ao mundo, aberto às situações reais, mas, também virtuais”. Essa relação, não necessariamente “[...] engendra um produto que poderia tornar-se autônomo sob forma de um saber-objeto que poderia ser nomeado sem referência a uma atividade”.
Destacando a relação epistêmica com o saber, projetada em termos de domínio de um objeto de forma pertinente, ou do domínio de uma atividade, Charlot (2000) utiliza como referência o caso da natação. Para ele, um tipo de saber que procede da atividade da natação não está desprendido da ação de nadar, mais especificamente “[...] aprender a nadar é aprender a própria atividade, de maneira que o produto do aprendizado, nesse caso, não pode ser separado da atividade” (CHARLOT, 2000, p. 69). Os saberes que se inscrevem no corpo, por meio do domínio de uma atividade, são mais difíceis de enunciação e muitas vezes uma enunciação exaustiva é impossível. Remetendo a Schwartz, define o autor que “[...] nem tudo pode ser enunciado, subsistindo uma fronteira entre ‘experiência’ e ‘conhecimento’” (CHARLOT, 2000, p. 75) o que, por outro lado, indica que “[...] a apropriação do enunciado, por mais exaustiva que seja, nunca é equivalente ao domínio da atividade” (CHARLOT, 2000, p. 70).
Do mesmo modo, a figura do aprender que se projeta em termos de dispositivos relacionais, como “[...] aprender a ser solidário, desconfiado, responsável, paciente [...], a mentir, a brigar, a ajudar os outros” (CHARLOT, 2000, p. 70) faz parte dos processos epistêmicos da relação com o sabere, nesse caso, assim como no anterior,
[...] aprender é passar do não-domínio para o domínio e, não, constituir saber-objeto. Trata-se, dessa vez, porém, de dominar uma relação com os outros e reciprocamente. Aprender é tornar-se capaz de regular essa relação e encontrar a distância conveniente entre si e os outros, entre si e si mesmo; e isso, em situação (CHARLOT, 2000, p. 70).
Lendo as respostas dos alunos que responderam ao questionário, pode-se perceber a dificuldade que possuem em transformar o que sabem, o que aprenderam no seu processo de escolarização em relação à Educação Física, em linguagem escrita. Acredita-se que tal fato muito se deve ao tipo de figura do aprender que é mobilizado por meio dessa disciplina. Os saberes tematizados pela Educação Física são, em sua maioria, saberes que se projetam por meio do domínio de uma atividade, no caso as atividades quedemandam controle e uso do corpo e dos movimentos, em que não existe referência a um saber-objeto, pelo menos por parte dos alunos, mas à capacidade de saber usar um objeto de forma pertinente. Então o caso não é indicar o que os alunos não conseguiram definir como suas aprendizagens em relação aos saberes compartilhados pela Educação Física, mas pedir que demonstrem o que sabem fazer com os objetos, ou quais atividades sabem realizar. Desse modo, uma possibilidade que se abre para futuras investigações, quando se buscar compreender o que os estudantes sabem, ou conseguiram sistematizar sobre a Educação Física no seu processo de escolarização, não é apenas inquirir para que falem de, mas que façam com. Os conhecimentos com os quais a disciplina Educação Física lida, como os esportes, jogos, danças, lutas e ginástica, são atividades constantemente submetidas a minivariações de situações de aplicação, por isso, como indica Charlot (2000), a dificuldade de expô-las integralmente em forma de enunciados. Fazercom, nesse sentido, indica o tipo de investigação que se pode desenvolver quando se busca compreender o conhecimento que os alunos e alunas conseguiram mais incorporar do que sistematizar em forma de enunciados.
Conforme Charlot (2000), quanto mais os saberes estiverem inscritos no corpo, mais difíceis serão os seus enunciados em forma de linguagem verbal ou escrita. Para o autor, “[...] seria provavelmente interessante perguntar às crianças se estão aprendendo a nadar, ou se estão aprendendo a natação, analisando desse ponto de vista sua conduta durante a atividade [...]” (CHARLOT, 2000, p. 70), porque aprender a nadar e aprender a natação constituem-se como duas relações epistêmicas diferentes: “[...] aprender a nadar é procurar dominar uma atividade, aprender a ‘natação’ é referir-se a essa atividade como um conjunto de enunciados (normativos) que constituem um saber-objeto” (CHARLOT, 2000, p. 70). Assim, fazercom mobiliza um outro rol de questionamentos, pois se pergunta pelo domínio que os alunos possuem de determinado saber em relação aos usos que podem fazer desse conhecimento em determinada situação.
Outro fator que demarca uma posição diferenciada da disciplina Educação Física em relação às demais disciplinas escolares é o fato de ela se desenvolver fora do ambiente de sala de aula. Quando perguntados por que gostavam da aula de Educação Física, as respostas dos alunos, em sua maioria, caminharam na direção de apontar o momento dessa aula como aquele em que se sentiam mais livres, mais propensos a novas experiências sociais, aos estímulos e relações em grupo. Disseram que gostam da Educação Física por ela estimular o trabalho em grupo, por ser capaz de integrar o grupo a partir de objetivos comuns e distrair das outras matérias.
Como se percebe, o estatuto da Educação Física diferencia-se das outras disciplinas, pois os saberes com os quais trabalha, mesmo que não se dê conta disso, organizam-se em uma esfera diferente do ponto de vista epistêmico. Seus saberes não tomam forma de saberes-objetos, mas inscrevem-se como saberes de regulação, relacionais para consigo mesmo e para com os outros, e mesmo “[...] os locais nos quais a criança aprende possuem estatutos diferentes do ponto de vista do aprendizado” (CHARLOT, 2000, p. 66-67). Com relação à sala de aula, à quadra ou ao pátio, apenas os dois últimos, na visão dos alunos, podem propiciar a um mesmo tempo distrair, fazer a prática dos esportes e ser local de aprendizagens relacionais.
De acordo com Chartier (2002), existe, indiscutivelmente, uma hierarquia entre as disciplinas. Existem aquelas consideradas mais importantes. Falando do caso da França, destaca-se o ensino das matemáticas e da língua francesa. Conforme a autora, essas disciplinas são consideradas mais importantes porque deixam traços e fazem uso de pelo menos dois dispositivos que atestam a sua importância, no caso o fichário (para os estudantes) e o caderno. As disciplinas que não possuem direito a esses dispositivos de registro, local em que os alunos anotam o que se discute em aula e sistematizam o aprendizado, tendem a ser consideradas menos relevantes institucionalmente.
“A escola é um universo de cultura escrita”. Com essa afirmação, Lahire (1997, p.20) desperta para a disciplina Educação Física um conjunto de questionamentos. Para esse autor a escola é o lugar em que os saberes são pedagogizados, delimitados e codificados. Na escola os saberes são formalizados e objetivados em práticas de escrita, movimento que tanto diz respeito aos professores quanto aos alunos. Se o espaço escolar é o universo privilegiado da cultura escrita, pergunta-se: haveria nesse universo, lugar para disciplinas que não lidam com esse suporte?
Conforme Chartier (2002), nas escolas francesas, a Educação Física é praticada com regularidade e entusiasmo, mas se pergunta: essa disciplina faz parte dos “saberes da escola”? De acordo com a autora (2002, p. 22), “[...] as opiniões são partilhadas: é ‘obrigatório praticá-la’, mas ‘é no ginásio, com um professor de esporte’”. Para Chartier (2002, p. 22) “[...] esta hierarquia indica que [existem] [...] ‘relações de força entre os saberes’, não do ponto de vista de seu valor intrínseco ou subjetivo (as crianças adoram ‘ginástica’), mas do seu valor na instituição”.
A Educação Física no ambiente escolar, quando perspectivada a partir das figuras do aprender propostas por Charlot (2000), aponta para a sua singularidade, pois não lida como as outras disciplinas com o suporte escrito (utilizando ou produzindo no processo de escolarização saberes-objetos). A sistematização do conhecimento então se realiza tanto pelo domínio de uma atividade, como pelo domínio dos dispositivos objetivados em situações relacionais. Esse fato então deslegitimaria a Educação Física a ser considerada um componente curricular, posto que os saberes por ela compartilhados não fazem uso do suporte da escrita?
De acordo com Hébrard (1990, 67) “[...] desde há dois séculos que os saberes elementares[10] foram assimilados às práticas de base da cultura escrita”. Como lidar com essa questão? Assumir o status de disciplina singular, que trata de um outro rol de conhecimentos por meio de um outro conjunto de procedimentos, ou buscar assemelhar-se às outras disciplinas escolares por meio da adoção dos mesmos procedimentos de registro? Mas haveria que se perguntar: o registro dos saberes compartilhados por essa disciplina seria capaz de integrar a Educação Física à cultura escrita? A adoção desse procedimento seria capaz de garantir a sua relevância institucional? Acreditamos que essa não seja a melhor saída, uma vez que, mesmo que a cultura escrita seja a “língua da escola”, o fato de possuir registros acessíveis não garantiria a sua relevância institucional, nem sua integração a esse universo de saberes intelectualizados, pois os saberes com os quais lida são, de certa forma, diferentes dos tematizados/compartilhados pelas demais disciplinas escolares.
Se, considerarmos que a formação das novas gerações oferecida pela escola não pode se reduzir à apropriação de saberes-objeto, a Educação Física, pela própria natureza de seu conteúdo, deve atuar naquilo que lhe é peculiar. Mais que isso, ela já vem fazendo, tal como a análise das respostas dos alunos apresentadas anteriormente demonstra. O grande problema reside no fato de que nem os professores em ação nem os estudiosos da área parecem ter consciência da importância desse saberes.
Buscar novas formas de relação com o saber, introduzindo um suporte para as práticas produzidas e incorporadas pelo fazercom, constitui-se como uma possibilidade de organização dos conhecimentos com os quais lida a Educação Física. Mas a simples introdução de um suporte, por si só, não será capaz de responder ao sentido desta disciplina na escola, uma vez que, em primeiro lugar, é necessário que esse dispositivo faça sentido para os alunos,[11] permitindo que compreendam que os saberes que aprendem e sistematizam contribuem para sua formação integral.
Quandoperguntados sobre o que se faz e se aprende nas aulas de Educação Física, mais da metadedos alunos conseguiram definir, mesmo com base nos conteúdos, os saberes que essa disciplina proporcionou nos oito anos de escolarização, revelando, nesse momento, outros tipos de saberes que não fazem parte do currículo formal e expresso da escola, mas que, com certeza, compõem o seu currículo oculto (SACRISTÁN; PÉREZ-GÓMEZ, 2000), e talvez sejam os que acabam sendo os mais bem incorporados no final do processo de escolarização, como os saberes de domínio de atividades e saberes relacionais descritos por Charlot (2000).
Abordando os dados da pesquisa em questão nessa perspectiva, percebe-se, efetivamente, que os alunos aprenderam, embora aos nossos olhos, não tivesse sido aquilo que deveria ter sido aprendido, e que expressa uma determinada forma de se encarar o papel da Educação Física no currículo escolar.
Lendo os resultados da pesquisa Diagnósticoda Educação Física no Estado do Espírito Santo, a partir das proposições de Charlot (2000), podemos efetuar leitura diferente desses achados, principalmente em relação às considerações que indicam que os alunos, após oito anos de escolarização, não conseguiram sistematizar e se apropriar minimamente de um conhecimento que permita a superação do senso comum. Os alunos efetivamente conhecem os conteúdos que lhes foram ensinados nas aulas de Educação Física, e expressam de maneira relativamente clara, funções importantes que ela tem em relação a outros saberes que não os de saberes-objeto.
Alémdisso, uma abordagem dos dados sob este novo ângulo poderia permitir outras possibilidades de análise daquelas que concluíram “que os professores revelaram impossibilidade de perceber a especificidade da Educação Física como um componente curricular” porque “justificaram a importância dessa disciplina na escola vinculada especialmente ao ‘desenvolvimento do aluno’, à ‘socialização’ e à ‘educação interdisciplinar’”. Do mesmo modo, valeria a pena rever a crítica sobre a importância que o papel dos materiais, equipamentos e instalações assumem na escola, assim como a visão de que o problema reside na falta de uma perspectiva “progressista” dos professores (DIAS et al., 1999).
Talcomo foi exposto no início deste artigo, estes últimos comentários não têm o objetivo de crítica aos procedimentos utilizados pela pesquisa Diagnóstico, mas o de abrir novas possibilidades de análise, já que, ao focalizarmos, continuamente, o que falta à Educação Física, poderemos estar deixando de lado saberes que são parte intrínseca dessa disciplina, pela sua própria natureza e que, queiramos ou não, tenhamos consciência ou não, estão sendo desenvolvidos pelos professores e incorporados pelos alunos.
Se assim for, não vale a pena refletir, estudar e pesquisar sobre eles?
Referências
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artimed Editora, 2000.
________. Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artimed Editora, 2001.
CHARTIER, Anne-Marie. Um dispositivo sem autor: cadernos e fichários na escola primária. RevistaBrasileira de História da Educação, Campinas – SP, Editora Autores Associados, n. 3, p. 9-26, jan./jun. 2002.
DIAS, Andreia et al. Diagnóstico da educação física escolar no Estado do Espírito santo: imaginário social do professor. RevistaBrasileira de Ciências do Esporte, UFSC, v. 21, n. 1, p. 183-192, 1999a.
________. Diagnóstico da educação física escolar no Estado do Espírito Santo condições comportamentais: o imaginário social dos alunos. RevistaBrasileira de Ciências do Esporte, UFSC, v. 21, n. 1, p. 1446-1446, 1999b.
________. Diagnóstico da educação física escolar no Estado do Espírito Santo: aspectos organizacionais e físicos. RevistaBrasileira de Ciências do Esporte, UFSC, v. 21, n. 1, p. 1447-1447, 1999c.
________. Diagnósticoda educação física escolar no Estado do Espírito Santo: o imaginário social dos diretores em relação à Educação Física. Disponível em: <www.ufes.br.~lesef>. Acesso em: 25 ago. 2004.
________. Diagnóstico da educação física no Estado do Espírito Santo: quem é o professor de educação física. RevistaBrasileira de Ciências do Esporte, UFSC, v. 21, n. 1, p. 1459-1459, 1999e.
HÉBRARD, Jean. A escolarização dos saberes elementares na época moderna. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 65-107, [s. m]. 1990.
LAHIRE, Bernard. Sucessoescolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Editora Ática, 1997.
OLHO nelas: escolas mistas entram na mira de educadores preocupados com a desvantagem no desempenho dos meninos. Revistada Folha, São Paulo, n. 568, ano 11, maio 2003.
SACRISTÁN, J. Gimeno; PÉREZ-GÓMEZ, Angel I. Compreendere transformar o ensino. Porto Alegre: Armed, 2000.
[1] Neste artigo, utilizamos o termo compartilhar em substituição à noção de transmissão, noção que entende o processo ensino-aprendizagem como algo apenas linear em que somente o professor possui algo para ensinar. A distribuição dos saberes no processo de ensino-aprendizagem é de mão dupla, em que o professor, ao mesmo tempo em que ensina, também aprende, e o aluno, ao mesmo tempo em que aprende, também ensina, mas cada um desses atores assumindo posições diferenciadas no processo. Desse modo, o aluno não é apenas recepção, nem o professor assume apenas a posição de transmissão, ambos trocam experiências, intencionais ou não, partilhando conhecimentos, expectativas, desejos, espaços e tempos.
* Doutorando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
** Professor Titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[2] A investigação foi realizada por um grupo formado por alguns professores e alunos do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo que se reuniam/reúnem no Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF). Endereço eletrônico: http://www.ufes.br/~lesef
[3] Ao se trabalhar em termos de imaginário, optou-se, na pesquisa Diagnóstico, por adotar a proposta de análise do discurso desenvolvida por Bakhtin (1997), desviando-se, desse modo, de assumir uma postura psicologizante ao se tratar do tema e, ao mesmo tempo, assumindo que o imaginário é construído no processo social, projetando, assim, para os discursos manifestados pelos entrevistados a construção de um universo produzido a partir de vivências sociais objetivas.
[4] Dos 632 alunos entrevistados, 430 estavam naquele momento cursando o ensino fundamental e 202 alunos estavam no ensino médio.
[5]Dos 50 questionários utilizados para a produção deste artigo, constatou-se que 14 alunos estavam cursando o primeiro ano do ensino médio (um no curso Técnico em Contabilidade, dois em Técnico em Administração, dois Magistério e nove no Básico – Científico), com idade entre 15 e 21 anos. Alémdesses, havia 19 alunos estudando no segundo ano do ensino médio (um no Magistério, dois no Técnico em Enfermagem, quatro no Técnico em Contabilidade, quatro no Técnico em Administração, oito no Básico – Científico), com idade entre 16 e 27 anose 17 cursando o terceiro ano do ensino médio (um no Técnico em Enfermagem, três no Magistério, três no Técnico em Contabilidade, quatro no Técnico em Administração e seis no Básico – Científico), com idade variando entre 17 e 38 anos.
[6] A Região Metropolitana é composta de seis regiões, formadas pelas cidades: Vitória, Serra, Vila Velha, Cariacica, Viana e, mais recentemente, passou a integrar esse pólo a cidade de Guarapari.
[7] Durantea pesquisa Diagnóstico a cada escola foi atribuído um número; esse mesmo número passou a identificar os questionários. Após o sorteio das escolas para a produção deste artigo, os questionários obtidos em cada instituição passou a compor a amostra. Por isso, como se pode perceber, faltaram na seleção da amostra, questionários provenientes de escolas das cidades de Cariacica, Viana e Guarapari.
[8] Esses dados foram obtidos da questão nº 8, em que se perguntou aos alunos do ensino médio: Olhando para trás, para o 1º grau, já foram oito anos de escola. Em quantos desses anos você teve realmente aulas regulares de Educação Física? Coloque um X apenas nos anos em que você teve aulas.
[9] De acordo com Charlot (2001, p. 30), “[...] a idéia de uma leitura em positivo (postura epistemológica) é freqüentemente interpretada em termos de leitura ‘otimista’ (posição moral)”, o que segundo o autor, mesmo com todos os seus desmentidos, esta interpretação de sua proposta, continua ainda sendo bem freqüente.
[10] Para Hébrard (1999) os saberes elementares são o ler-escrever-contar, conhecimentos que nem sempre estiveram unidos, mas dispersos em outras instituições, como a eclesiástica e a mercantil.
[11] Discutindo os resultados de uma pesquisa realizada em 1997, com jovens de 13 a 17 anos de idade que freqüentavam escolas de bairros de baixa renda na cidade de São Paulo, Charlot (2001) relata que esses jovens apresentavam muitas dificuldades para perceber um sentido para o que aprendiam na escola. Quando confrontados com a questão: “De tudo o aprendi e vivi, o que foi importante aprender? Quem me ensinou? Os alunos revelam nos textos que produziram como balanço, ou prestação de contas do que foi aprendido, consideraram que as aprendizagens relacionais que se objetivavam como um conjunto de valores éticos-morais (respeito, solidariedade, amor ao próximo, etc.) foram as mais significativas. Verificou-se que a escola e os saberes por ela distribuídos quase não apareciam nos textos dos participantes da pesquisa. De acordo com o autor, “[...] talvez o pouco valor que os jovens conferem ao aprendizado de conteúdos curriculares não seja resultante do seu ‘desinteresse’, e sim da sua dificuldade de encontrar um ‘sentido’ para aquilo que os professores ensinam” (CHARLOT, 2001, p. 47).