SCHNEIDER, O. A Educação Física e as relações epistêmicas com o saber: uma incursão no pensamento de Bernand Charlot. In: VIII EnFEFE, 2004, Niterói. Cultura e Educação Física. Niterói : Universidade Federal Fluminense, 2004. v. 1. p. 44-46.
A EDUCAÇÃO FÍSICA E AS RELAÇÕES EPISTÊMICAS COM O SABER: UMA INCURSÃO NO PENSAMENTO DE BERNARD CHARLOT
Omar Schneider[1]
RESUMO: O estudo possui como objetivo a compreensão de um tema ainda pouco privilegiado na literatura sobre a Educação Física escolar, qual seja, a relação dos alunos com os saberes compartilhados nas aulas de Educação Física. Utilizando como referência os estudos de Charlot (2000), em relação às figuras do aprender e a distinção que faz entre saberes objeto, saberes de domínio e saberes relacionais, se busca propor uma nova possibilidade de investigação para o tema da relação dos alunos com o saber. Com base nas proposições de Charlot (2000) é possível realizar um outro itinerário metodológico e obtenção de resultados diferentes dos que costumeiramente se evidenciam quanto se toma o aluno como fonte de informação para se saber o que aprendem e sistematizam nas aulas de Educação Física.
Elementospara uma teoria: umestudo sobre os saberes compartilhadosnas aulas de Educação Física
Para Charlot (2000), as teorias sociológicas vêem há muito tempo realizando uma leitura negativa sobre o processo de escolarização. Desde teorias mais reconhecidas, como a produzida por Pierre Bourdieu em relação à reprodução, até as que se baseiam mais no senso comum, que insistem em explicar as diferenças em termos de dons, tem-se sempre perguntado pelo que os alunos não sabem, o que eles não conseguiram sistematizar, o que eles não conseguiram aprender, ou seja, o que lhes falta.
Conforme Charlot (2000), para que se ultrapasse algumas análises negativas que foram produzidas em relação processo de escolarização é preciso que produza uma leitura positiva sobre a relação dos saberes e as situações de fracasso escolar. De acordo com o autor (2000, p. 30), “[...] praticar uma leitura positiva[2] é prestar atenção [...] ao que as pessoas fazem, conseguem, têm e são, e não somente àquilo em que elas falham e às suas carências”. Para o autor, essa forma de inquirir a realidade escolar “[...] é antes de tudo uma postura epistemológica e metodológica” (CHARLOT, 2000, p. 30). Essa nova postura do pesquisador, para o autor, proporciona que se interrogue sobre a realidade escolar perguntando não só pelos conhecimentos adquiridos ao lado das carências, mas proporciona que se leia de “[...] uma outra maneira o que é lido como falta pela leitura mais negativa” (CHARLOT, 2000, p. 30).
Ao discutir sobre as figuras do aprender, Charlot (2000, p. 66) indica que existem quatro formas de elas se manifestarem:
- uma possui relação com objetos-saberes, objetos nos quais os saberes estão incorporados, como nos livros, nas obras de arte, etc.;
- outra tem a ver com objetos cujo uso deve ser aprendido, como amarrar o cadarço de um sapato, até os mais elaborados, como usar o computador;
- existe também a figura que se projeta em atividades a serem dominadas, as quais possuem estatutos variados, como ler, nadar ou desmontar um motor; e por último,
- a figura do aprender que se manifesta em dispositivos relacionais, como saber se portar socialmente, os quais só podem ser apropriados na relação com o outro.
De acordo com o autor (p. 66),
[...] ante esses objetos, essas atividades, esses dispositivos e formas, o indivíduo que ‘aprende’ não faz a mesma coisa; o aprendizado não passa pelos mesmos processos. Existe aí um problema cuja dimensão não é apenas cognitiva e didática. A questão é mais radical: aprender será exercer que tipo de atividade?
Essas relações epistêmicas com o saber, conforme Charlot (2000), inscrevem-se de duas maneiras: uma em que o saber assume forma de objeto, principalmente por meio da linguagem escrita, e outra em que o saber se concretiza por meio do domínio de uma atividade, ou no capacitar-se a utilizar um objeto de forma pertinente, ou seja, do não-domínio ao domínio. Domínio esse, segundo o autor, que se inscreve no corpo. Citando Merleau-Ponty, Charlot (2000, p. 69), afirma que “[...] o corpo é o lugar de apropriação do mundo, um ‘conjunto de significações vivenciadas’, um sistema de ações em direção ao mundo, aberto às situações reais, mas, também virtuais”. Essa relação, não necessariamente “[...] engendra um produto que poderia tornar-se autônomo sob forma de um saber-objeto que poderia ser nomeado sem referência a uma atividade”.
“A escola é um universo de cultura escrita”. Com essa afirmação, Lahire (1997, p.20) desperta para a disciplina Educação Física um conjunto de questionamentos. Para esse autor a escola é o lugar em que os saberes são pedagogizados, delimitados e codificados. Na escola os saberes são formalizados e objetivados em práticas de escrita, movimento que tanto diz respeito aos professores quanto aos alunos. Se o espaço escolar é o universo privilegiado da cultura escrita, pergunta-se: haveria nesse universo, lugar para disciplinas que não lidam com esse suporte?
De acordo com Chartier (2002), existe, indiscutivelmente, uma hierarquia entre as disciplinas. Existem aquelas consideradas mais importantes. Falando do caso da França, destaca-se o ensino das matemáticas e da língua francesa. Conforme a autora, essas disciplinas são consideradas mais importantes porque deixam traços e fazem uso de pelo menos dois dispositivos que atestam a sua importância, no caso o fichário e o caderno (para os estudantes). As disciplinas que não possuem direito a esses dispositivos de registro, local em que os alunos anotam o que se discute em aula e sistematizam o aprendizado, tendem a ser consideradas menos relevantes institucionalmente.
A Educação Física no ambiente escolar, quando perspectivada a partir das figuras do aprender propostas por Charlot (2000), aponta para a sua singularidade, pois não lida como as outras disciplinas com o suporte escrito (utilizando ou produzindo no processo de escolarização saberes-objetos). A sistematização do conhecimento então se realiza tanto pelo domínio de uma atividade, como pelo domínio dos dispositivos objetivados em situações relacionais. Esse fato então deslegitimaria a Educação Física a ser considerada um componente curricular, posto que os saberes por ela compartilhados3[3] não fazem uso do suporte da escrita?
Destacando a relação epistêmica com o saber, projetada em termos de domínio de um objeto de forma pertinente, ou do domínio de uma atividade, Charlot (2000) utiliza como referência o caso da natação. Para ele, um tipo de saber que procede da atividade da natação não está desprendido da ação de nadar, mais especificamente “[...] aprender a nadar é aprender a própria atividade, de maneira que o produto do aprendizado, nesse caso, não pode ser separado da atividade” (CHARLOT, 2000, p. 69). Para o autor, os saberes que se inscrevem no corpo, por meio do domínio de uma atividade, são mais difíceis de enunciação e muitas vezes uma enunciação exaustiva é impossível. Remetendo a Schwartz, define o autor que “[...] nem tudo pode ser enunciado, subsistindo uma fronteira entre ‘experiência’ e ‘conhecimento’” (CHARLOT, 2000, p. 75) o que, por outro lado, indica que “[...] a apropriação do enunciado, por mais exaustiva que seja, nunca é equivalente ao domínio da atividade” (CHARLOT, 2000, p. 70).
De acordo com Hébrard (1990, 67) “[...] desde há dois séculos que os saberes elementares[4] foram assimilados às práticas de base da cultura escrita”. Como lidar com essa questão? Assumir o status de disciplina singular, que trata de um outro rol de conhecimentos por meio de um outro conjunto de procedimentos, ou buscar assemelhar-se às outras disciplinas escolares por meio da adoção dos mesmos procedimentos de registro? Mas haveria que se perguntar: o registro dos saberes compartilhados por essa disciplina seria capaz de integrar a Educação Física à cultura escrita? A adoção desse procedimento seria capaz de garantir a sua relevância institucional? Acredito que essa não seja a melhor saída, uma vez que, mesmo que a cultura escrita seja a “língua da escola”, o fato de possuir registros acessíveis não garantiria a sua relevância institucional, nem sua integração a esse universo de saberes intelectualizados, pois os saberes com os quais lida são, de certa forma, diferentes dos tematizados/compartilhados pelas demais disciplinas escolares.
Os saberes tematizados pela Educação Física são, em sua maioria, saberes que se projetam por meio do domínio de uma atividade, no caso as atividades desportivizadas, em que não existe referência a um saber-objeto, pelo menos por parte dos alunos, mas à capacidade de saber usar um objeto de forma pertinente. Desse modo, como indica Charlot (2000) ao questionar sobre os saberes que os alunos conseguiram sistematizar, uma possibilidade não é enfatizar apenas o que eles não conseguiram definir como suas aprendizagens em relação aos saberes compartilhados pela Educação Física, mas pedir que demonstrem o que sabem fazer com os objetos, ou quais atividades sabem realizar. Assim, uma possibilidade que se abre para futuras investigações, quando se buscar compreender o que os estudantes sabem, ou conseguiram sistematizar sobre a Educação Física no seu processo de escolarização, não é apenas inquirir para que falem de, mas que façam com. Os conhecimentos com os quais a disciplina Educação Física lida, como os esportes, jogos, danças, lutas e ginástica, são atividades constantemente submetidas a minivariações de situações de aplicação, por isso, como indica Charlot (2000), a dificuldade de expô-las integralmente em forma de enunciados. Fazercom, nesse sentido, indica o tipo de investigação que se pode desenvolver quando se busca compreender o conhecimento que os alunos e alunas conseguiram mais incorporar do que sistematizar em forma de enunciados.
Conforme Charlot (2000), quanto mais os saberes estiverem inscritos no corpo, mais difíceis serão os seus enunciados em forma de linguagem verbal ou escrita. Para o autor, “[...] seria provavelmente interessante perguntar às crianças se estão aprendendo a nadar, ou se estão aprendendo a natação, analisando desse ponto de vista sua conduta durante a atividade [...]” (CHARLOT, 2000, p. 70), porque aprender a nadar e aprender a natação constituem-se como duas relações epistêmicas diferentes: “[...] aprender a nadar é procurar dominar uma atividade, aprender a ‘natação’ é referir-se a essa atividade como um conjunto de enunciados (normativos) que constituem um saber-objeto” (CHARLOT, 2000, p. 70). Assim, fazercom mobiliza um outro rol de questionamentos, pois se pergunta pelo domínio que os alunos possuem de determinado saber em relação aos usos que podem fazer desse conhecimento em determinada situação.
Referências
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artimed Editora, 2000.
________. Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artimed Editora, 2001.
CHARTIER, Anne-Marie. Um dispositivo sem autor: cadernos e fichários na escola primária. RevistaBrasileira de História da Educação, Campinas – SP, Editora Autores Associados, n. 3, p. 9-26, jan./jun. 2002.
HÉBRARD, Jean. A escolarização dos saberes elementares na época moderna. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 65-107, [s. m]. 1990.
LAHIRE, Bernard. Sucessoescolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Editora Ática, 1997.
[1] Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física. Endereço eletrônico: www.proteoria.org; e-mail: proteoria@proteoria.org
[2] De acordo com Charlot (2001, p. 30), “[...] a idéia de uma leitura em positivo (postura epistemológica) é freqüentemente interpretada em termos de leitura ‘otimista’ (posição moral)”, o que segundo o autor, mesmo com todos os seus desmentidos, esta interpretação de sua proposta, continua ainda sendo bem freqüente.
[3] No estudo, utiliza-se o termo compartilhar em substituição à noção de transmissão, noção que deixa ver o processo ensino-aprendizagem como algo apenas linear em que somente o professor possui algo para ensinar. A distribuição dos saberes no processo de ensino-aprendizagem é de mão dupla, em que o professor, ao mesmo tempo em que ensina, também aprende, e o aluno, ao mesmo tempo em que aprende, também ensina, mas cada um desses atores assumindo posições diferenciadas no processo. Desse modo, o aluno não é apenas recepção, nem o professor assume apenas a posição de transmissão, ambos trocam experiências, intencionais ou não, partilhando conhecimentos, expectativas, desejos, espaços e tempos.
[4]Para Hébrard (1999) os saberes elementares são o ler-escrever-contar, conhecimentos que nem sempre estiveram unidos, mas dispersos em outras instituições, como a eclesiástica e a mercantil.