LOCATELLI, Andrea Brandão. ; VENTURIM, Silvana . Reflexões sobre o Ensino da Educação Física na Educação do Campo. In: XXIX Simpósio Brasileiro III Congresso Interamericano de Política e Administração da Educação, 2009. Direitos Humanos e Cidadania: desafios para as políticas públicas e a gestão democrática da educação.
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO
Silvana Ventorim-Universidade Federal do Espítito Santo (UFES)-PROTEORIA[1]
Msª Andrea Brandão Locatelli-Prefeitura Municipal de Vitória (PMV)-Centro Universitário de Vila Velha (UVV)-PROTEORIA
Resumo
Analisa elementos teórico-metodológicos para o ensino da Educação Física na educação do campo, com vistas à participação em um projeto político-pedagógico orgânico e interdisciplinar.Caracteriza-se como pesquisa documental bibliográfica, utilizando a produção acadêmica dos últimos cinco Congressos Brasileiros de Ciências do Esporte. Aponta a necessidade de refletir o trabalho pedagógico da área a partir do entendimento da expressão corporal como linguagem, conferindo às práticas corporais locais uma autoria que valorize a identidade dos sujeitos do campo.
Palavras-chave: Educação do Campo. Educação Física. Práticas Pedagógicas.
INTRODUÇÃO
A valorização da experiência com as práticas corporais sistematizadas historicamente, configura nossa proposição de argumentos que qualificam o compromisso político e pedagógico da Educação Física no contexto da educação do campo.
Defendemos uma Educação Física responsável pela intervenção pedagógica e social como possível e desejável para proporcionar aos alunos a inserção e a construção de uma cultura do “se movimentar-se” esclarecida e critica, comprometida com a sua formação humana, ou seja, uma formação cultural pela vivência das práticas corporais sistematizadas pela e na escola, particularmente a escola do campo.
Com isso, pretendemos indicar elementos teórico-metodológicos para a contribuição da Educação Física para as práticas pedagógicas da educação do campo com vistas à sua participação em um projeto político-pedagógico orgânico e interdisciplinar. Desse modo, procuramos neste texto evidenciar fundamentos da Educação Física que colaborem nas práticas da educação do campo, salientando as práticas corporais vividas e experienciadas pelos sujeitos desse espaço e tempo, no sentido de refletirmos sobre a necessidade de afirmarmos as identidades que constituem as particularidades desse contexto.
Buscamos a produção acadêmica dos últimos cinco Congressos Brasileiros de Ciências do Esporte para evidenciarmos as principais questões e problematizações sobre a relação da Educação Física e a educação no campo, contribuindo desse modo para a reflexão aqui proposta.
EDUCAÇÃO DO CAMPO: CONVITE AO DIÁLOGO
A educação do campo tem buscado organizar e afirmar suas práticas em torno das produções culturais dos sujeitos desse contexto particular, constituindo políticas que inscrevam o campo no cenário social do país. Como consideram Therrien e Damasceno (1993), o estudo de um conjunto de ações de diferentes naturezas relativo à temática da educação e dos movimentos sociais no campo tem possibilitado a expressão das condições de produção das práticas educativas que legitimam a identidade do campesinato.
A análise da prática educativa embutida nos movimentos sociais compreende um tecido vasto e rico que vem sendo investigado, destacando-se como subtemas o próprio processo de constituição desses movimentos, o estudo do conjunto das ações que os camponeses desenvolvem para a construção de sua identidade como sujeitos coletivos, assim como o saber social gestado nas lutas cotidianas enfrentadas pelo campesinato (THERRIEN e DAMASCENO. 1993, p. 8).
A discussão sobre as relações sociais de produção do campesinato implica no campo da educação, sobremaneira, investigar as condições históricas, econômicas, políticas e culturais das ações educativas, seus sujeitos, seus saberes, seus tempos e espaços. É importante destacar o lugar, o papel e os interesses dos sujeitos do campo concebendo-os como protagonistas das lutas políticas e da própria educação, ou seja, como sujeitos produtores de cultura e de conhecimentos integrados em um processo de construção da realidade.
Nesse contexto, o campo é percebido como produtor de culturas pela sua capacidade de constituir-se como um espaço de criação de bens, valores, relações, sujeitos e identidades e, não meramente como o lugar da produção econômica e da não-cultura. Por isso o papel importante da educação neste contexto e, também, do reconhecimento da necessidade de uma política pública para educação do campo que assegure as diferentes dimensões das relações que aí se estabelecem, sejam políticas, econômicas, ambientais ou culturais.
Souza (2008) contrapondo-se à visão de camponês e de rural como sinônimo de arcaico e atrasado coloca que
[…] a concepção de educação do campo valoriza os conhecimentos da prática social dos camponeses e enfatiza o campo como lugar de trabalho, moradia, lazer, sociabilidade, identidade, enfim, como lugar da construção de novas possibilidades de reprodução social e de desenvolvimento sustentável (SOUZA, 2008, p. 2).
A autora destaca que a educação do campo, no modo como vem sendo trabalhada pelos movimentos sociais, inaugura no debate educacional brasileiro a idéia de educação pública pautada nos interesses da sociedade civil organizada, em oposição à idéia de educação pública estatal. Opõe-se a escola estatal burguesa por compreendê-la que esta não é pública ou do interesse público, tendendo a favorecer os interesses do próprio Estado com sua autonomia relativa (SOUZA, 2008).
Nesse sentido, sugere uma educação pública construída no âmbito das contradições da sociedade, chamando a atenção para a trajetória do MST como movimento de luta por uma política de educação do campo, que dá sinais de força nas relações conflituosas e contraditórias com o Estado. Souza (2008) nos indica que os conhecimentos produzidos nos movimentos sociais fortalecem o interesse público no embate com os interesses do Estado. Coloca que
São conhecimentos que permitem questionar o modo de produção capitalista em suas contradições, bem como o lugar do Estado na estrutura capitalista; são conhecimentos e experiências educativas de mais de 20 anos que demonstram a necessidade e a possibilidade de transformar e criar processos de formação de profissionais da educação objetivando o interesse público, do povo trabalhador do campo (SOUZA, 2008, p. 4).
Desse modo, decorre a possibilidade do debate acerca das práticas pedagógicas na escola do campo, ou seja, atentarmos para diferentes e opostas concepões: as que se aproximam da idéia da educação rural, pautada na política pública estatal; e as de educação do campo, pautada no debate empreendido pelos movimentos sociais de trabalhadores.
Interessa-nos, portanto, nos aproximarmos e evidenciarmos aquilo que configura as práticas da educação do campo, procurando afirmar identidades dos sujeitos, em suas possíveis relações com a escola e com as práticas pedagógicas, assim como, refletirmos sobre políticas que favoreçam a inscrição dessas produções no cenário educacional e cultural do país.
A preocupação com o acesso à escola do campo, ou seja, a democratização da socialização educativa nesse contexto, sugere uma escola pensada e criada, no e pelo campo, para atender às suas exigências culturais. Democratizar a educação do campo tem relação com a formação dos sujeitos desse campo, no que diz respeito, principalmente, as transformações e superações das relações sociais e culturais nesse contexto.
É preciso formar os sujeitos do campo levando-os a criar significados para suas relações e produções, culturais e sociais, nesse espaço e tempo, com vistas a qualificá-lo e diferenciá-lo do espaço urbano e da cidade, na medida que possuem características e interesses próprios e que possam dialogar com sujeitos de outros espaços e interesses.
Caldart (2003) coloca que
[...] as populações do campo incorporam em si uma visão que é um verdadeiro círculo vicioso: sair do campo para continuar a ter escola, e ter escola para poder sair do campo. Ou seja, uma situação social de exclusão, que é um dos desdobramentos perversos da opção de (sub)desenvolvimento do país feita pelas elites brasileiras, acaba se tornando uma espécie de bloqueio cultural que impede o seu enfrentamento efetivo por quem de direito. As pessoas passam a acreditar que para ficar no campo não precisam mesmo de ‘muitas letras’(p. 66).
A autora chama à atenção para o desafio de romper com a perspectiva da socialização escolar no campo para poder sair dele, no sentido de implementarmos um projeto popular de desenvolvimento do campo e de país. Entende que a escola e a democratização do seu acesso, tanto nesse espaço, quanto fora dele, colabora na formação de um homem que valorize o lugar onde produz cultura.
Faz-se necessário formar cidadãos conscientes de que os desafios do campo levam-nos a lutar por uma educação do próprio lugar, como um direito e um dever, uma vez que se consolide um modo de vida e uma visão do contexto vivido, ou seja, escolas no e do campo.
Desse modo, a educação do campo precisa compreender-se e aos seus sujeitos como movimento permanente de produção de cidadãos que, nas relações e lutas sociais, têm suas histórias valorizadas, desenvolvendo autoria nas prática.. Os currículos escolares do campo não podem deixar de problematizar as questões das relações locais, assim como, inscrevê-las no cenário do contexto político e social do país, buscando aproximar-se e diferenciar-se, na medida em que se fizer necessário.
Assim, a formação escolar do campo, que apreende as particularidades e singularidades das experiências dos sujeitos que nele vivem, tem sido objeto de estudo na literatura sendo por nós considerada como importante para pensarmos o ensino da Educação Física.
AGENDA PARA DEBATE: FUNDAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA NA E COM A EDUCAÇÃO DO CAMPO
A perspectiva de apresentar fundamentos que possam orientar a organização teórico-metodológica da Educação Física na educação do campo pode se tornar uma tarefa complexa diante das diferentes e singulares formas de expressão das práticas educativas no campo, especialmente quando se toma como referência os espaços e tempos em que acontecem, os conhecimentos a serem transmitidos/construídos, as abordagens metodológicas de ensino, a formação docente, as condições objetivas e estruturais, enfim, um conjunto de elementos que fundamentam os processos educativos.
Além disso, as grandes problemáticas que atravessam a discussão da educação do campo como a dicotomia rural e urbano, os valores e vínculos de pertença e identidade dos sujeitos do campo, a educação como direito de todos e como condição da organização política e cultural do campo e da formação da cidadania dos seus sujeitos, especialmente para o desenvolvimento sustentável do campo pautado nas atitudes de justiça e paz, a questão das lutas pela terra e do desenvolvimento econômico e social do campo não podem estar descontextualizadas das proposições educacionais. Neste sentido, as considerações apresentadas pretendem tão somente mobilizar o debate sobre as possibilidades de fortalecer o diálogo sobre a Educação Física na educação do campo.
Para tanto, consideramos que toda proposta pedadagógica evidencie o pressuposto de que a educação, determinada pelas circunstâncias histórico-políticas, não pode se eximir da tarefa de explicar, interpretar e desvelar as contradições dessa realidade e, da qual fazem parte sujeitos criativos e transformadores. Nesta perspectiva, a organização de ações pedagógicas, como nos ensina Paulo Freire, têm como eixos o desafio da curiosidade e da capacidade crítica dos alunos; a rigorosidade metódica para a apropriação do conteúdo de ensino e da realidade; a constante articulação da teoria com a prática; a leitura e compreensão da realidade e o entendimento da possibilidade de intervenção humana.
Assim, compreende-se que uma educação essencialmente problematizadora busca a compreensão das relações subjacentes às variadas dimensões da práxis pedagógica — conhecimento/realidade/professores/alunos — na direção da construção de sujeitos críticos, investigadores e produtores de saber para as necessárias intervenções humanas na construção de um novo projeto de sociedade.
Com isso, afirmamos que o conhecimento de que trata a Educação Física, articulado aos demais conhecimentos das diferentes áreas do conhecimento, tem fundamental importância para o processo de apropriação e intervenção dos seres humanos na realidade na busca de sua formação. É na inter-relação da especificidade da Educação Física com a especificidade da educação que se situa o eixo norteador da finalidade de sua presença nos projetos pedagógicos.
Entendemos que a Educação Física é a área do conhecimento/disciplina, tanto pela sua legalidade como pela sua identidade, responsável pelo tratamento pedagógico do movimento corporal humano como práticas resultantes de um processo de organização histórico-cultural dos seres humanos na dinâmica de construção de sua existência. Por isso, a necessidade de uma teoria pedagógica que a sustente e articule as variadas formas e dimensões do movimento corporal para que sejam apropriadas num tempo e espaço pedagógicos. Isto corresponde a tomar o movimento corporal humano como instrumento de explicação, compreensão, interpretação e apropriação da realidade na qual esse movimento vem sendo produzido (VENTORIM, 1997).
Consideramos que as manifestações do movimento corporal humano a serem elaboradas e sistematizadas pela Educação Física no espaço e tempo da educação, se expressam nos esportes, nas danças, nas ginásticas, nas lutas, nos jogos e nas brincadeiras etc. Podemos, então, considerar que essas variadas formas do movimento corporal humano resultam das experiências e construções humanas ao longo dos tempos e, portanto, transformaram-se e aperfeiçoaram-se para responderem às relações dos sujeitos com e no mundo.
Quando são indicadas as variadas dimensões do movimento humano, pretende-se evidenciar que este pode ser estudado e compreendido pela abordagem biológica, fisiológica, biomecânica, psicomotora, técnica, psicológica, filosófica, sociológica, histórica, política, enfim, por uma totalidade dos conhecimentos que nos possibilite buscar no seu tratamento pedagógico uma síntese superadora. Isso quer dizer que todas essas dimensões são fundamentais para o processo de ensino-aprendizagem da Educação Física e devem ser de conhecimento dos professores e dos alunos para a ação crítica e consciente nesse processo.
Assim sendo, entendemos que a Educação Física deve tratar dessas diferentes dimensões do movimento corporal humano, num processo de articulação entre as mesmas, na dinâmica da relação teoria e prática. Isso implica negar o estudo e a prática do movimento corporal humano apenas sob a orientação de uma dessas dimensões. O reducionismo advindo dessa opção fragmenta a intencionalidade das práticas humanas relativas ao “se-movimentar”, na medida em que as sistematizações das manifestações do movimento corporal humano são constituídas por intencionalidades e sentidos humanos.
Nessa perspectiva, a Educação Física assume, articulada ao projeto político-pedagógico, a tarefa de qualificar os sujeitos para a leitura e compreensão da realidade por meio de princípios teórico-metodológicos problematizadores, com o intuito da emancipação humana.
Entende-se, então, que, para a materialização da organização do processo pedagógico da Educação Física, pressupõe-se uma nova concepção do espaço de aula. Este espaço representa o “espaço de ação”, de movimento, de diálogo e de manifestação e expressão da magnitude das conquistas do homem em sua existência, que estão configuradas na forma de saber escolar/movimento corporal humano. O momento de transmissão/apropriação do conhecimento se constitui na problematização e compreensão das relações estabelecidas entre o homem e a natureza, na luta pela sua emancipação histórica. Estudar as manifestações do movimento corporal humano possibilitaria, dessa forma, a vivência e a prática das relações humanas nas dimensões cultural e social. Entendemos a aula de Educação Física como espaço organizado para o estudo com e sobre o movimento corporal humano.
Soma-se a essa reflexão as considerações de Vago (1999) quando argumenta que a Educação Física deve estar enraizada na cultura escolar como uma área do conhecimento responsável:
a) pela problematização e pela prática da cultura corporal de movimentos produzida pelos seres humanos;
b) por se constituir em tempo e espaço de:
• investigação e problematização da história de sujeitos da educação encarnados e presentes na instituição educativa, que revela o conhecimento sobre as práticas corporais da cultura de que são portadores(as);
• invenção de outras formas de fazer os esportes, as danças, a ginástica, os jogos, as lutas, os brinquedos, as brincadeiras;
• questionamento dos padrões éticos e estéticos construídos culturalmente para a realização dessas e outras práticas corporais;
• realização do princípio de que os alunos(as) podem (e devem) se colocar à disposição de si mesmos quando partilham, fruem, usufruem, criam e recriam as práticas corporais da cultura;
• garantia do direito de todos(as) participarem, sem exclusão por nenhum motivo;
• respeito à corporeidade singular de cada um(a), construída em sua história de vida.
No sentido de garantir o desenvolvimento destas proposições aos sujeitos que habitam o campo é preciso ressaltar o tratamento metodológico dos conteúdos abordados, considerando as particularidades desse tempo e espaço. Desse modo, faz-ze necessário:
- garantir o direito a todos os sujeitos de acesso aos conhecimentos produzidos culturalmente no campo e que se manifestam nas diferentes práticas corporais, como possibilidade de uma transformação coletiva das necessidades sociais;
- considerar a autoria das práticas corporais dos sujeitos desse contexto, na direção da afirmação dos seus vínculos e pertencimentos ao campo, por meio dos conhecimentos produzidos e compartilhados;
- problematizar a produção cultural das práticas corporais, bem como questionar os valores e padrões a elas usualmente vinculadas, procurando reinventar os saberes e fazeres que atravessam as relações sociais do campo;
- considerar as diversidades dos sujeitos em função das diversidades do contexto do campo, potencializando e socializando os saberes e fazeres próprios que nele são produzidos;
- resgatar e valorizar as histórias de vida e as experiências dos sujeitos do campo com as práticas corporais, como elementos centrais no processo de ressignificação daquilo que sabem e fazem, na ampliação significativa de suas aprendizagens e na afirmação das suas identidades;
- adotar a prática reflexiva nas ações de ensino e aprendizagem das práticas corporais, de forma individual e coletiva, procurando garantir uma responsabilidade dos envolvidos na transformação permanente dos modos de pensar e fazer a vida no campo.
Garantir ensino de qualidade na Educação Física do campo requer nos comprometermos com a diversificação e aprofundamento dos conteúdos, levando os alunos a conhecerem as várias produções sistematizadas na Educação Física, assim como, o desenvolvimento destes conteúdos no cenário cultural (suas transformações, história, mitificações, etc.). Importante também é considerar as experiências produzidas pelos sujeitos do campo, promovendo o diálogo entre saberes locais e saberes sistematizados, na perspectiva de ampliar aquilo que é próprio e de autoria desses sujeitos.
No que se refere à abordagem do corpo no ensino da Educação Física do campo, é preciso compreendermos a relação entre os diferentes significados que a corporeidade assume nesse contexto. Por meio do nosso corpo, interagimos e transformamos o ambiente que nos cerca, e por isso, necessitamos conhecer estruturas anatômicas, sistemas fisiológicos e suas possíveis alterações durante a atividade física. Ainda, precisamos compreender referenciais para relações humanas (autoconceito, auto-imagem, esquemas corporais) e as características mecânicas do movimento humano (DARIDO, 2005), para que possamos elaborar sentidos e significados da corporeidade como linguagem corporal, não nos restringindo aos aspectos biológicos, tão pouco fazendo oposição entre mente e corpo, mas sim praticando uma continuidade entre corpo e contexto. Assim, entedemos a necessidade da problematização e vivência do movimentar-se em suas diferentes interfaces, tendo em vista o contexto escolar e não-escolar.
Enfim, a compreensão e as possíveis significações do corpo no ensino da Educação Física dos sujeitos do campo, é importante referência para que possam produzir práticas transformadoras de suas particulares situações, bem como dialogar, de forma refletida e crítica, com as demandas desse contexto. É por meio desse movimento reflexivo e inventivo, individual e coletivo, de ressignificações e recriações de identidades, que as práticas do ambiente do campo podem ser valorizadas, afirmadas e terem a necessária visibilidade política e social.
EDUCAÇÃO FÍSICA EM DIÁLOGO COM A EDUCAÇÃO DO CAMPO
Os trabalhos que seguem tratam das principais questões e problematizações acerca da temática Educação Física e educação do campo. Foi realizado um levantamento de trabalhos no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, nos anos 2000. Este levantamento procurou por meio de palavras-chaves e de leitura exploratória dos resumos e dos textos, selecionar aqueles que relacionassem a Educação Física às atividades do campo.
Foram encontrados 15 trabalhos, apresentados sob forma de comunicação oral e pôster. Em 2001 foram selecionados 6 trabalhos; em 2003, 3 trabalhos; em 2005, 4 trabalhos e em 2007, 2 trabalhos. A seleção foi realizada no grupo de trabalho temático “Movimentos Sociais” e, a seguir, apresentamos o resultado desse levantamento, considerando o evento, data, autor e título do trabalho.
A seguir, organizamos os trabalhos e os autores, que abordaram a Educação Física no campo, destacando os eventos e o ano que ocorreu.
XV Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. 2007.
1 CASAGRANDE, N. Formação de educadores – as contribuições dos sujeitos coletivos do campo e suas aproximações com a pedagogia socialista.
2 MIRANDA, A. K. P.; ELIAS, F. das C. O. A importância da educação física do campo: um relato de experiência.
XIV Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. 2005.
1 ALBUQUERQUE, J. de O.; CASAGRANDE, N. A construção da teoria pedagógica com categorias de práticas da cultura corporal no PRONERA-LEPEL-UFBA.
2 ANDRADE, A. S.; MIRANDA, A. K. P.; QUINTANILHA, R. F. PRONERA: Educação no campo e cultura corporal.
3 FERREIRA, C. R.; CASAGRANDE, N. O processo de trabalho pedagógico da educação física no movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST): a formação humana na perspectiva crítico superadora.
4 HACK, L. Concepções de corpo na escola do MST-um estudo de caso
XIII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. 2003.
1 FERREIRA, C. R.; CASAGRANDE, N. O processo de trabalho pedagógico da educação física no movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST): em busca da formação humana a partir da perspectiva crítico-superadora.
2 LAZZAROTTI FILHO, A. A educação física e o movimento dos trabalhadores rurais sem terra.
3 NASCIMENTO, M do S. Jogos rurais regionais: uma intervenção possível na organização social dos moradores do sítio Cachoeira de Tabocas-PE
XII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. 2001.
1 CASAGRANDE, N.; TAFFAREL, C. Z.; LUCENA, F. G. de. O processo de trabalho pedagógico acerca da cultura corporal no MST: desvelando pressupostos.
2 JANATA, N. E. Educação física e proposta pedagógica do movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST): possíveis aproximações com a abordagem crítico superadora.
3 LORDELO, P. R. Projeto: “Educação Física: práticas pedagógicas em movimento - uma experiência com o MST”.
4 NASCIMENTO, M. do S. Olimpíadas rurais: possibilidades do esporte e lazer nas comunidades rurais.
5 SANTOS, G. de O. Relato de uma experiência com educação física não formal nos assentamentos rurais de Sumaré-SP
6 SOBRINHO, J. de A. M.; MARQUES JUNIOR, W. Práticas corporais no movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST).
Por meio de fichamento dos textos, evidenciamos as idéias principais que nos ajudam a configurar o modo como a área de Educação Física se aproxima das questões educativas do campo, assim como, nos indicam fundamentos que possam orientar a organização teórico-metodológica das práticas de Educação da área nesse espaço.
A produção na Educação Física sobre o tema educação no campo utiliza referenciais teóricos, principalmente, de autores fora da área, para produzir entedimentos sobre suas possibilidades de trabalho. Nesse sentido, a recorrência mais significativa por nós percebida, foi a de que os discursos construídos pelos autores da Educação Física sobre as questões do campo relacionam-se às causas emancipatórias dos sujeitos.
As práticas educativas objetivam, de um modo geral, a transformação e conscientização crítica dos trabalhadores do campo, principalmente, aqueles pertencentes ao Movimento Sem Terra, para uma possível mudança em suas condições sociais de vida. Projetam para o futuro um outro modo de serem reconhecidos no lugar e tempo que produzem suas práticas, indicando assim, de um modo geral, uma insatisfação com a atenção política que vem recebendo no país.
Ocorre uma compreensão da lógica da formação humana, tendo como idéia central a libertação dos sujeitos da sociedade injusta e desigual, utilizando uma abordagem crítica da Educação Física, para aproximar-se desse discurso, sendo este o ponto de maior convergência do diálogo entre a Educação Física e a educação no campo.
Percebemos a pouca valorização dos fundamentos teóricos e metodológicos da Educação Física nas problematizações das práticas pedagógicas do campo. Aquilo que se refere às especificidades da área, assim como, a possibilidade de um fazer pedagógico que aborde os conteúdos da educação física, encontra-se muito pouco evidenciado e sistematizado nas produções investigadas.
Registramos a participação consecutiva de alguns autores tratando da mesma temática em eventos seguidos, como é o caso de Casagrande (2001, 2003, 2005), Ferreira (2003, 2005), Nascimento (2001, 2003) e Miranda (2005 e 2007), o que pode conferir continuidade e aprofundamento às questões investigadas.
No Congresso Brasileiro de Ciências do Esportes de 2007, os dois trabalhos encontrados tratam de uma perspectiva de formação de professores e do esforço de justificar a prática da Educação Física no campo.
Miranda e Elias (2007) discutem a importância da Educação Física no campo e utilizam referenciais de análises que indicam possibilidades de novos caminhos de intervenção nas estruturas de ordens sociais, na busca de melhorias para aqueles que se encontram em processo de exclusão.
Casagrande (2007) assume a cultura corporal como perspectiva para dialogar e criar categorias de análise nas práticas desenvolvidas no movimento dos trabalhadores sem-terra. Discute a formação de professores de Educação Física, procurando configurar o profissional que trabalhará com os sujeitos do campo nos moldes do desenvolvimento da conscientização crítica dos cidadãos e do entendimento da transformação da realidade.
A autora diz que os professores que trabalham no campo precisam afinar-se com a idéia de pensá-lo de um outro modo, que supere a lógica da produção capitalista. Nesse sentido, Casagrande (2007) afirma que
[…] vêm sendo materializada, através destes sujeitos coletivos do campo, de caráter revolucionário, novas possibilidades de organização do trabalho pedagógico que permitem um direcionamento da formação numa perspectiva omnilateral solidificando bases para a construção de princípios que orientam uma teoria pedagógica articulada a um projeto histórico superador das relações de produção da vida sob o capitalismo (p. 14).
Não desmerecendo a necessidade de refletirmos sobre nossas condições de vida social, percebemos o quanto as práticas e as pesquisas relacionadas à formação de professores docentes do campo, ocupam-se mais em formar sujeitos para “transformar a realidade do campo” do que pensar em estratégias que “formem o professor no campo”.
No Congresso Brasileiro de Ciências do Esportes de 2005, foram encontrados trabalhos que, nas suas reflexões ou nos seus relatos de experiências, também discutem as questões problematizadas pelo viés da inconformidade com a situação vivida. Ainda que indiquem mudanças nas compreensões dos sujeitos das práticas desenvolvidas, como é o caso do trabalho que segue, o fio condutor é o de superação de entedimentos por meio de críticas ao modelo social vigente.
Em Andrade, Miranda e Quintanilha (2005) encontramos o relato de uma experiência voltada para formação continuada de jovens e adultos, coordenada pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Objetivou trabalhar a Educação Física na perspectiva da cultura corporal, com enfoque na concepção crítico-superadora, tratando das especificidades do campo e do fortalecimento da consciência político-social dos educandos.
O trabalho realizado preocupou-se em desmitificar a idéia de que a Educação Física está associada a uma concepção de aptidão física e de competição e procurou abordar os conteúdos jogos, danças, lutas, ginástica e esporte de modo a compreender a construção histórica desses conteúdos de forma crítica e como esses são tratados pela ideologia dominante, idéias presentes na perspectiva da cultura corporal.
Desse modo, segundo as autoras, a Educação Física foi trabalhada como um dos eixos de formação, buscando relacionar seus conteúdos às questões emergentes, pontuais e necessárias às reivindicações sócio-políticas e econômicas dessa população. A experiência gerou a compreensão de uma outra forma de perceber a Educação Física por parte dos trabalhadores rurais:
[…] contribuiu para desmistificar a idéia que tinham os educadores militantes sobre a disciplina Educação Física associada, apenas, a uma concepção de aptidão física e competição, sendo o esporte o maior representante. Assim, optou-se por desenvolver um trabalho na perspectiva de compreender a Educação Física a partir de um novo olhar, cujo referencial é a cultura corporal. Esse foi o ponto de maior destaque dessa experiência para todos (as) os (as) envolvidos (as) nesse processo de ensinoaprendizagem (ANDRADE, MIRANDA E QUINTANILHA, 2005, p. 2).
Este trabalho ressalta a necessidade da atenção para com o lugar que a Educação Física ocupa entre os sujeitos do campo e, nos chama mais à atenção, para questionarmos a necessidade de sistematizarmos e publicizarmos as práticas nesse local para que possamos caracterizar o trabalho desse espaço como práticas possíveis, elaboradas e reelaboradas permanentemente, na medida das necessidades dos sujeitos.
Em Capela e Figueiredo (2005) encontramos relatos das necessidade cotidianas daqueles que vivem no campo, evidenciando, principalmente, a cultura primeira de movimento das crianças das escolas. Por meio de entrevistas, os sujeitos são investigados a partir das idéias de um projeto maior (capitalismo x socialismo), no qual os autores acreditam.
Descrevem dados da realidade e de significação dos sujeitos entrevistados, que, no entender destes autores, demostram avanços ao que propõe o mundo capitalista, tanto como proposta de humanização, quanto de estruturação da escola e seus ritos e rituais. Apesar de uma compreensão apriorística dos autores quanto ao que produzem os sujeitos do campo, evidenciam questões importantes
Buscando entender o contexto da zona rural e suas particularidades, especialmente no que diz respeito à infância e sua cultura lúdica, podemos dizer que, no meio rural, as crianças se inserem muito cedo no mundo adulto, pois na medida em que conseguem realizar pequenas tarefas, como por exemplo, alimentar os animais, carregar ferramentas, cuidar dos irmãos menores, cuidar dos afazeres da casa, etc., acompanham e auxiliam seus pais no trabalho. Outro ponto que chamou a atenção foi o papel central que a escola exerce na socialização das crianças. Devido às distâncias entre uma moradia e outra, os momentos como a hora do recreio e, especialmente as aulas de Educação Física, acabam sendo um dos poucos espaços onde as crianças podem se reunir para brincar, jogar e se divertir (CAPELA; FIGUEIREDO, 2005, s. p.).
Compreendemos a necesidade de partir dessa realidade apresentada pelos autores acima e trabalharmos os “possíveis” dentro das comunidades rurais e nas suas escolas. Para pretendermos mudar algo, faz-se necessário partir das experiências, conforme os autores procuraram evidenciar, e criar sentidos e significados para as mesmas no processo de construção individual e coletiva do próprio grupo. Desse modo, acreditamos numa possível ressignificação das práticas, por aqueles que estão no campo e, também, fora dele, pois estas fundam-se em sujeitos que vivem nesse ambiente e, portanto, significam-as na medida de suas necessidades.
Os eventos do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte dos anos de 2003 e de 2001, podem ser cararacterizados pela concentração de trabalhos fortemente marcados pelas idéias da pedagógia crítico-social dos conteúdos.
Lazzarotti Filho (2003) procura compreendercomo o MST se organiza, sua proposta de educação e a relação entre a universidade e o movimento. Recorre às publicações da área de Educação Física, dos últimos 10 anos, quando aponta o início de uma aproximação entre o MST e esta área. Naquele momento, afirmou a existência de experiências, projetos de pesquisas, de extensões e intervenções pontuais que foram sistematizadas e publicadas. O trabalho desse autor indica-nos não só as publicações sobre a temática, como confere importância à necessidade de identificação de ações realizadas que possam colaborar em novos entendimentos para o desenvolvimento de práticas com os sujeitos no campo.
Em 2001, o evento concentrou o maior número de trabalhos por nós selecionados, que por sua vez, discutem a prática da Educação Física, especialmente, no movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Os autores, de um modo geral, concentram seus esforços em ressaltar a abordagem pedagógica crítico-superadora para discutir possibilidades de intervenção, trazendo indicativos de orientações teórico-metodológicas na Educação Física referentes mais aos discursos produzidos junto aos referenciais utilizados, do que particularidades das práticas dos sujeitos que possam contribuir na produção de identidades e autorias localizadas nas caracterizações próprias do contexto do campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como podemos produzir uma prática significativa da Educação Física por meio das relações estabelecidas entre alunos e professores do campo? O que os alunos do campo podem e precisam aprender sobre a Educação Física que colabore nas transformações e afirmações desse contexto?
Responder à essas perguntas sugere, inicialmente, que os sujeitos que praticam o campo sejam valorizados naquilo que produzem culturalmente sobre a expressão corporal como linguagem, na direção de ampliar o reconhecimento e as diferenças desse tempo e lugar, o campo. Para tanto, compreendemos a necessidade de explorar as práticas possíveis realizadas no campo, e torná-las comum, para que, desse modo, possamos melhor conhecer e valorizar aquilo que é particularmente feito pelos sujeitos que habitam o campo.
Relacionar as práticas do campo, permanentemente, a idéia de que estas são realizadas para transformar a realidade, preterindo igualdade e justiça nas relações entre os sujeitos e nas orientações governamentais, parece-nos ser um dos caminhos a ser trilhado na valorização das experiências dos sujeitos do campo e na sua formação política. Outros caminhos precisam ser trilhados junto à esse, para que possamos reconhecer as particularidades do viver no campo, assim como chamar atenção para os ajustes políticos e sociais que valorizem também os sujeitos que nele vivem.
Entendemos, portanto, a necessidade de construirmos a prática pedagógica da Educação Física nas escolas e no currículo do meio rural, com base nas características desse ambiente e para esse ambiente. É preciso considerar o que já vem sendo realizado pelos professores da área na socialização escolar e problematizar essas condições de realização, para que se possa escrever, com os próprios autores dessa prática, os diferentes textos que vêm configurando a educação do campo.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, A. S.; MIRANDA, A. K. P.; QUINTANILHA, R. F. PRONERA: Educação no campo e cultura corporal. In: Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 14, 2005, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre, 2005. GTT-8 CDR.
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[1]Instituto de Pesquisa em Educação e em Educação Física