SCHNEIDER, Omar; FERRERA NETO, Amarílio. Intelectuais, Educação e Educação Física: um olhar historiográfico sobre saúde e escolarização no Brasil. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas - SP, v. 27, n. 3, p. 73 - 92, 2006.
INTELECTUAIS, EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO FÍSICA: UM OLHAR HISTORIOGRÁFICO SOBRE SAÚDE E ESCOLARIZAÇÃO NO BRASIL
Omar Schneider[1] Doutor em Educação pela PUC-SP e-mail: omar@proteoria.org
Amarílio Ferreira Neto[2] Doutor em Educação pela UNIMEP e-mail: amarilio@proteoria.org
RESUMO
Lança um olhar sobre a produção discursiva de intelectuais de diferentes formações, como Medicina, Direito, Educação e Educação Física, com a finalidade de perceber as mutações das representações relacionadas com as interfaces entre Educação, Educação Física, Escolarização e Saúde com o discurso do desenvolvimento e da modernização entre as duas décadas finais do século XIX e as quatro décadas iniciais do século XX no Brasil.
Palavras-chave: Saúde; Educação Física; Escolarização
Introdução
Neste estudo, trabalhamos prestando atenção ao tema saúde (e também doença) como representação que envolve significados que podem ser apreendidos tanto em suas continuidades como em suas descontinuidades. O conceito de representação no estudo é utilizado conforme as proposições de Chartier (1990, p. 18), para o qual o seu sentido deve ser compreendido como “[...] matrizes de discursos e de práticas diferenciadas [...] que têm por objectivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades - tanto a dos outros como a sua”.
Na primeira parte do texto, trabalhamos na perspectiva de compreender como os intelectuais de diferentes formações lidaram com a discussão da saúde, da higiene, da educação e da sociedade nas duas décadas finais do século XIX e duas décadas iniciais do século XX. Na segunda parte, vamos nos deter nas décadas de 1930 e 1940 e voltar o foco para a Educação Física e para o conjunto de representações que foram mobilizadas por alguns intelectuais dessa área. Em particular, os intelectuais que se organizaram em torno da revista Educação Physica, periódico lançado pela Companhia Brasil Editora, em 1932, no Rio de Janeiro, que possuía como seus principais eixos temáticos a vulgarização dos esportes e as discussões sobre a saúde.
A escola como lugar de promover a saúde: intelectuais e representações
“Numa terra radiosa vive um povo triste”. Assim começa Paulo Prado (1997, p. 53)[3] o ensaio em que buscava, em fins da década de 1920, delinear a identidade e o caráter que o brasileiro teria herdado da experiência colonial. Fruto das teses que procuravam apontar os males de origem do brasileiro, o ensaio de Paulo Prado é uma síntese das representações sobre as diferenças das raças, que vinham animando os debates de boa parte da intelectualidade brasileira das décadas finais do século XIX e início do século XX.[4]
Caricatura de um Brasil colocado em evidência pelas expedições científicas organizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz, especialmente pelos relatórios produzidos pelos médicos Belisário Penna e Arthur Neiva, em suas andanças pelo interior, e tornados públicos entre 1916 e 1918, ao serem veiculados no jornal Correio da Manhã, a tese de Paulo Prado é escrita na mesma linha de reflexões de outros intelectuais, como o médico Miguel Pereira, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, para o qual o Brasil se configurava como um imenso hospital.[5] Para essa intelectualidade, as condições de saúde dos habitantes do Brasil eram decorrentes da miscigenação e de uma mentalidade mística pouco afeita às normas de higiene.
A figura que reinava no imaginário da intelectualidade brasileira e que tem sua síntese no Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato, em 1918, como meio de descrever o típico homem do interior, mobiliza imagens de um País assolado pela doença e pela vermina,[6] decorrente da falta de saneamento, de nutrição e de instrução, mas também fruto do descaso dos governantes. Para os explicadores do Brasil da década de 1910 e 1920, o problema estava em como sanear as imensas populações de jecas-tatus espalhadas pelo território nacional, moralizar seus corpos e desmistificar “[... ] o mobiliário cerebral do Jeca [... ] [e] o suculento recheio de superstições [...]” (LOBATO, 1918, p. 286) que povoavam a sua mente.
Em momento não muito distante, o problema era encarado de outra forma. Não fazia sentido investir na saúde, educação e saneamento de um povo que se considerava triste; ele já estava condenado pela raça e pelas leis da hereditariedade. O melhor caminho seria a imigração, modo mais simples de melhorar as características raciais do brasileiro. Inspirados nos trabalhos de Cesare Lombroso,[7] médico legista muito festejado no final do século XIX,[8] que propunha diagnosticar a possível tendência ao crime por meio da análise das características “somatotípicas”[9] dos indivíduos, alguns intelectuais brasileiros[10] não viam muitos caminhos para o Brasil tornar-se um País moderno, a não ser pelo branqueamento de sua população.[11]
Conforme Leite (1992), vários ensaístas, como Silvio Romero e Euclides da Cunha, acreditavam que somente o branqueamento da população poderia salvar o Brasil da degenerescência.[12] Lugar comum nos estudos, ditos científicos do final do século XIX, que procuravam provar a desigualdade das raças, das quais a branca e a européia seriam superiores, o tema da degeneração, de acordo com Blanckaert (2001, p. 149), mobilizava outras questões como “[... ] os efeitos da mestiçagem entre raças diferentes, a limitação da imigração de variada extração, a parte do inato e do adquirido nas gerações, os problemas de aclimatação nas colônias, a detecção das frações ‘degeneradas’ da humanidade (alcoólicos, epilépticos, loucos, pervertidos e criminosos”.[13]
As idéias de tornar o Brasil um País livre dos seus “males de origem”, utilizando o expediente da imigração, são bem localizadas na historiografia, pois, por ocasião da Primeira Guerra Mundial, o cenário internacional e brasileiro, em relação aos emigrantes, se modifica. Escrevendo sobre a ação sanitarista de Belisário Pena e Arthur Neiva, os pesquisadores Benchimol e Teixeira relatam que a deflagração da Primeira Guerra Mundial é um marco para se compreender a mudança de atitudes em relação à importância que passa a se dar às questões relacionadas com a saúde no Brasil. Conforme os autores,
Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial e a conseqüente interrupção do fluxo imigratório, as cidadelas dos coronéis puderam ser expugnadas pela saúde pública porque a valorização da força de trabalho passou a exigir o prolongamento de seu tempo de vida útil, sem o que a produção agrícola entraria em colapso por falta de mão-de-obra (BENCHIMOL; TEIXEIRA, 1993, p. 96).[14]
Após a Primeira Grande Guerra, a posição dos intelectuais, quanto ao modo a ser empregado para se sanear e eugenizar o Brasil, também sofreu profundas modificações.[15]
Com o refluxo das correntes imigratórias determinadas pela Primeira Grande Guerra e sob o impacto das greves operárias do final da década de 1910, as teorias racistas que, na economia das providências republicanas, haviam constituído a opção imigrantista como recurso civilizatório perdem um de seus pilares de sustentação. As teses racistas, que haviam sido articuladas em defesa da imigração, fundamentando práticas excludentes da participação do liberto no mercado de trabalho dos setores mais dinâmicos da economia nacional, são agora reformuladas (CARVALHO, 2003). Essa política de exclusão do liberto fundada na aposta racista de que a tão decantada operosidade do imigrante acabasse por erradicar a vadiagem nacional ruía, fazendo com que a incorporação das populações excluídas por sua lógica perversa se configurasse como problema posto para a escola (CARVALHO, 2003). “Vitalizar pela educação e pela higiene toda essa gente reduzida pela vermina a meio-homem, a um terço de homem, a um quarto de homem [...]” passa a se constituir como solução (COUTO, 1927, p. 14).[16]
Conforme Benchimol e Teixeira (1993, p. 93), é necessário “[...] aquilatar a densidade relativa que o processo histórico conferira à palavra saúde [...]” (grifo dos autores), pois,[17] desde as expedições científicas de Manguinhos, o imaginário das populações urbanas fora impregnado pelas cenas descritas, fotografadas e romanceadas da calamidade que eram os sertões brasileiros, povoados por criaturas corroídas por doenças. Naqueles confins onde as oligarquias extraíam sua riqueza e poder reinava outro cenário dantesco. Por isso, discutir saúde implicava questionar o modelo todo de civilização do país. Saúde era o prisma que refratava os parâmetros sociais, culturais, políticos e geográficos da modernização desejada por todos os grupos sociais descontentes (BENCHIMOL; TEIXEIRA, 1993, p. 93).
O movimento protagonizado por médicos e outras parcelas descontentes da intelectualidade revela os anos da década de 1910 como importantes para se compreender como se passou a construir e a se sedimentar no imaginário dos intelectuais a ideologia nacionalista e modernizante sobre as possibilidades do Brasil e de seu povo no concerto da modernidade, assim como as ações coletivas que convulsionaram os anos 20.[18]
Com os investimentos que se fazem para apresentar um povo com capacidade de mudança e de assumir seu lugar junto às nações desenvolvidas, modifica-se a representação de que o brasileiro se configurava como pertencente a um povo repleto de taras, degenerado, amoral, fraco, desanimado e passivo. Imagem que vinha sendo pintada em tintas fortes por autores como José Veríssimo (1890) em seu livro A Educação nacional; Silvio Romero (1901) em seus Ensaios de sociologia e literatura; Monteiro Lobato (1918) e seu Urupês (Jeca Tatu); Julio de Mesquita Filho (1925) em A crise nacional; e Paulo Prado (1928) com o seu Retrato do Brasil.[19]
Saúde como tema agregador de sentidos: o debate na revista Educação Physica (19321945)
Schneider (2004)[22] argumenta que a intensificação do capitalismo industrial no Brasil, que a “Revolução de 1930” proporcionou, determinou na mesma ordem o desaparecimento e o aparecimento de novas exigências educacionais. As demandas da sociedade industrial impunham modificações profundas na forma e no modo de se encarar a educação, pois novas relações de produção colocavam-se na ordem do dia. E em relação à Educação Física o que acontece? Quais os deslocamentos de sentido que se podem perceber?
Nas duas primeiras décadas do século XX, é possível observar, conforme Vago (1999), a mutação na denominação do que se entedia por “gymnastica” no interior da escola, para algo que se definia como a disciplina “Educação Physica”, que, trabalhando com os princípios da ginástica sueca, tinha como objetivo corrigir e endireitar os corpos das crianças, o que, segundo Vago (1999), compatibilizava perfeitamente com os princípios da Pedagogia alicerçada na metáfora da ortopedia. Vejamos o que propunha o Método Sueco de exercitação criado por Pehr Henrik Ling, entre 1804 e 1830.
CONCEPÇÃO E BASES
[...] o individuo, seja pela influencia das taras ancestrais, seja pelo meio de vida, raramente possue a perfeição corporea e a saude que deviam ser inerentes. Dentre as principais anomalias apresentadas nós encontramos a curvatura dorsal exagerada, o peito reintrante, a má elasticidade toracica, a inflexibilidade, a insuficiencia muscular, etc., traduzida pela tuberculose, reumatismos, molestias cardíacas, abdominais, etc. Qual o meio de corrigir este estado de cousas? Somente o trabalho físico, cuidadosamente executado, é capaz de evitar e sanar estes defeitos corporeos. [...] Um metodo, porém, deve ter uma parte especialmente medica, em que se estudem exercicios com esses carater, tendo em vista a cura de certos defeitos ou moléstias (BONORINO et al., 1931, p. 110111).
Curar os defeitos, as moléstias e anormalidades passam a ser temas objetivados como finalidades para a escola, cabendo à “Educação Física” o seu quinhão no projeto de eliminação dos atavismos, sejam estes conseqüentes das taras dos ancestrais, sejam aquelas adquiridas pelo meio. Regeneração e purificação da raça eram os discursos comuns entre os intelectuais no Brasil, desde fins do século XIX, mesmo que, segundo Bizzo (1995, p. 45), não houvesse uma “raça brasileira” a preservar ou purificar, merecendo o Brasil o epíteto de “cadinho racial”.[23]
O otimismo que toma conta das discussões sobre a possibilidade de mudança das características psicológicas e físicas do brasileiro, o seu apuro e melhoramento pela adoção de normas higiênicas e eugênicas, a capacidade transformadora do caráter pela Educação e modificação biotipológica pela Educação Física fazem com que o brasileiro deixe de ser visto
como o degenerado[24] e indolente. Esse caminho, segundo Carvalho (1997, p. 281-282), não é outro senão a “descoberta” que os entusiastas da educação realizaram na década de 1920, “[...] de que a educação era o ‘grande problema nacional’ por sua capacidade de ‘regenerar’ as populações brasileiras, erradicando-lhes a doença e incutindo-lhes hábitos de trabalho”.
A revista Educação Physica registra esses momentos e os retrata em imagens e textos como na matéria assinada por Lourenço Filho (1939), em que discute a Educação Física e a futura raça brasileira. Para o autor, aspectos que eram apontados como responsáveis pela configuração psicológica do brasileiro e que faziam com que ele fosse considerado atrasado, em relação aos países de população mais homogênea, eram, na verdade, os que nos faziam mais preparados para assumir nosso lugar junto às nações desenvolvidas. Para ele, cabia à Educação Física a função de plasmar todos os elementos étnicos em apenas um grupo. Conforme Lourenço Filho (1939, p. 11-12).
[...] nem toda a gente terá calculado, ainda, quanto a Educação Física precisa ser parte nos projetos de correção e realização da patria. [...] nós viemos verdadeiramente do princípio começamos a constituir uma raça verdadeiramente nova [... ] chega de desdem pelo corpo.
O corpo era o alvo a ser atingido pela Educação Física, a melhoria das condições biotipológicas pela adoção de regras de higiene, nas quais estavam inclusos o amor pelo esporte, a exercitação diária, o aprendizado na escola das regras de saúde, o culto ao padrão grego de estética corporal, o amor à pátria e a moralização dos hábitos que poderiam levar à degenerescência.[25]
Como um dos objetivos projetados para a revista Educação Physica era a melhoria/aperfeiçoamentos da juventude brasileira, como afirmavam os editores, muitas matérias foram alvo dessa preocupação, chegando a ser o terceiro tema da linha editorial do periódico. Quando realizada a catalogação das matérias que circularam na revista Educação Physica[26] e posteriormente a sua organização por eixos temáticos, percebem-se que os aconselhamentos sobre Saúde obtiveram 11,4% de recorrências, mas possivelmente esse número pode ser maior, uma vez que, mesmo a vulgarização dos esportes era prevista pelos editores como uma forma de aperfeiçoamento da raça. A revista Educação Physica faz circular, do primeiro ao último número, um programa em que a prática de esportes ou a adoção de um sistema de exercícios eram percebidos como um meio de promover a saúde e, conseqüentemente, a melhoria da raça.[27]
Analisando as imagens que circularam na revista Educação Physica, percebe-se que muitas se relacionam com as representações que se cristalizaram sobre o modelo de corpo pautado na estética grega. Muitas das imagens que são impressas nas capas da revista são dedicadas ao panteon dos deuses gregos, principalmente Apolo e Vênus. As outras são desenhos ou fotografias de pessoas praticando esportes em grupo ou individualmente, tomando banho de mar, escalando montanhas, velejando, remando, nadando, correndo e competindo, indicando movimento, rapidez, flexibilidade, agilidade, destreza e dinamismo.[28]
Os leitores são estimulados a mudarem sua aparência, mudarem suas atitudes, sua rotina diária e seus hábitos e elegerem a estética grega como o modelo moderno a ser seguido. Procurando educar os leitores para esse padrão, assim prescrevem:
Apollo é a mais impressionante expressão da cultura grega, synthese admirável do homem como o idealizaram os hellenos. Forte, másculo, destemido, vigoroso e bello, mas de uma beleza viril. É o homem que a civilização moderna forceja por produzir: cidadão culto e forte, de robustez artistica. Na tendência moderna, temos o resurgimento da concepção hellenica do Bello [...]. A Humanidade batalha sem tréguas em busca do resurgimento de Apollo, o typo modelar, o homem exemplicativo, que os Hellenos idealizaram (EDUCAÇÃO PHYSICA, 1937, n. 12, p. 12).
Mesmo a educação grega é utilizada como o ideal a ser seguido, pois, para eles, essa educação constituía-se em um modelo em que os homens eram educados, física, moral e intelectualmente, uma “[...] educação integral, em que musculos, cerebro e caracter, numa connexão indesunivel, buscam a perfeição” (R. NETTO, 1937, n. 12, p. 12). Para os editores da revista Educação Physica, esse tipo de educação deveria ser apropriado pelos professores e colocado em ação nos estabelecimentos de ensino e nos clubes, pois, desse modo, poder-se-ia criar uma raça forte, destemida e determinada, sendo essa uma das metas a serem seguidas, pois “[...] as nações novas fizeram dela a sua primeira preocupação” (EDUCAÇÃO PHYSICA, 1938, n.24, p. 9).[29]
A educação do brasileiro para a busca da beleza das formas, de acordo com os ideais helênicos, pode ser sintetizada pela matéria escrita pelo Dr. Renato Kehl,[30] (EDUCAÇÃO PHYSICA, 1940, n. 41, p. 16-17), com o título A beleza feminina: raras, raríssimas são as mulheres verdadeiramente belas. Para o autor, a beleza estava ligada à normalidade. Um corpo bem feito indicava saúde, mas saúde não só relacionada com a estética, mas também com sua herança genética, pois quem possuía belas formas é porque tinha recebido de seus progenitores bons genes. Não obstante, quem não se enquadrasse no ideal poderia buscá-lo por meio da exercitação diária, pois assim conseguiria transmiti-lo à sua prole, sendo esse um dos principais recursos para a regeneração física da espécie.[31] Ser bela, sentencia o autor, implica reunir em um corpo de deusa as formas magníficas de Afrodite.[32]
Em matéria denominada de A nova Educação Física,[33] traduzida de uma revista norte- americana, fica definido com qual finalidade, na visão dos editores, a Educação Física deveria ser implementada nas escolas e clubes e qual tipo de homem tinha-se por objetivo produzir no Brasil. Sobre o tipo ideal de homem, assim escrevem:
[...] a nova educação physica deverá formar um homem typico que tenha as seguintes caracteristicas: detalhe mais delgado que cheio, gracioso de musculatura, flexivel, de olhos claros, pelle sã, ágil, desperto, erecto, dócil, enthusiasta, elegre, viril, imaginoso, senhor de si mesmo, sinsero, honesto, puro de actos e de pensamentos, dotado com o senso de honra e da justiça, compartilhando no companheirismo dos seus semelhantes (FISHER, 1934, p. 13- 14).[34]
Como se vê, as características de corpo espelhado na estatuária grega, belo, de porte varonil e o corpo eugenizado mesclam-se para formar um modelo de corpo para o brasileiro.
Para que se possa compreender a temática saúde e suas relações com o discurso educacional, por meio de uma análise histórica da questão, é necessário, como afirma Carvalho (1997), compreender os elementos discursivos que assombravam os intelectuais do início do século XX. Para a autora (1997) os discursos que se propunham como modernos e científicos, que tinham suas preocupações voltadas para a ortopedia como arte da correção são gradativamente expelidos do campo da Pedagogia e produzidos como tema e objeto de intervenção de outros saberes e poderes.
Como meio de ilustrar a discussão, trazemos algumas falas que são emblemáticas e dão o tom do tratamento oferecido à questão no periódico. Em 1938, Clair V. Langton, diretora da divisão de Educação Physica do Oregon State College, assim declara: “Se a educação physica fizer um esforço honesto para estudar e comprehender o campo de saude como relacionado com os problemas da educação geral, não há duvida que muito beneficio provirá de tal esforço” (LANGTON, 1938, p. 18).
A autora definia “[...] a educação da saude como ‘inclusão da somma de todas as experiências que influenciam favoravelmente os hábitos, as atividades e o conhecimento relativo ao individuo, á communidade, e saude racial’” (LANGTON, 1938, p. 18). Para Langton, no programa escolar, a Educação Física deveria desempenhar, juntamente com o serviço de saúde escolar e com a higiene, o papel de promover o saneamento dos corpos dos escolares.
Para Hollanda Loyola, um dos editores da revista Educação Physica, a Educação Física deveria ser compreendida como um
[...] poderoso elemento de eugenia [...] [porque] fornece os elementos susceptíveis de desenvolver e aperfeiçoar as qualidades físicas e moraes do individuo, por um lado provocando a força, a resistência, a dextreza, a saude, o equilíbrio das grandes funções organicas, a beleza das formas e a anatomia das proporções (LOYOLA, 1939, p. 9).
Um detalhe que chama a atenção é que o autor utiliza a imagem de Antinous como representação do modelo que se deveria perseguir, classificando a divindade grega como o padrão da educação integral, física, moral e intelectual. Em outro artigo, Hollanda Loyola
prossegue com a discussão, mas agora voltando seus olhos para a educação da infância e para a prescrição de meios para se produzir homens no qual o modelo de Antinous estivesse presente.[35]
Retomando o tema da saúde como objetivo da Educação Física na escola, Hollanda Loyola sintetiza as preocupações/representações que moviam o imaginário dos professores de Educação Física, assim como parte da intelectualidade que tinha como preocupação a educação do homem brasileiro. Para o autor,
Por certo a educação física por si só não seria bastante para sanar todas as anomalias já de ordem patológica, já de natureza congênita que exigem a intervenção direta dos cuidados médicos, mas é fora de dúvida que a criança sob a influência de uma educação física bem conduzida, reforça o seu organismo, apura as suas energias, desenvolvendo-se melhor para a plenitude de uma vida sadia e produtiva, subtraindo-se assim à aquisição de deficiências orgânicas e de formas defeituosas que comprometem a sua saúde e prejudicam a sua beleza (1940, p. 37).
Na campanha realizada pelos editores da revista Educação Physica, pode-se perceber que saúde, estética, moral, higiene, disciplina e caráter compõem um conjunto de princípios que se apresentam como um jogo de espelhos, no qual hábitos saudáveis equivalem a saúde. Ter saúde significa ter uma vida virtuosa que, ao mesmo tempo, representa moralidade. Estética/beleza corporal indicia para normalidade, que se apresenta como parâmetro para se avaliar o caráter. Disciplina remete para a imagem da higiene, que induz a idéia de saúde. Assim, nesse jogo de espelhos, saúde equivale à condição de desenvolvimento para se produzir a sociedade que se quer instaurar.
Considerações finais
Nos anos finais do século XIX e nos primeiros 40 anos do século XX, pode-se perceber, por meio de alguns trabalhos que buscaram estudar o discurso dos intelectuais da Educação, quanto à necessidade da Educação Física na escola, que os campos de discussões que são desenvolvidas na Educação Física não estão distantes dos temas abordados pelos pedagogicistas. Os temas da Pedagogia são também os da Educação Física, ou vice-versa, observação que pode ser feita por meio da leitura de alguns trabalhos, como o desenvolvido por Schneider e Ferreira Neto (2001) que estudam o pensamento de Rui Barbosa e as discussões sobre a educação do físico, presentes nos pareceres sobre a Reforma do ensino primário e várias instituições complementares escritos em 1882; nas proposições de Manoel Bomfim em relação às suas Lições de Pedagogia: theoria e prática da educação, livro publicado em 1915; e nas análises e propostas de Fernando de Azevedo na obra Da Educação Física: o que ela é, o que ela tem sido e o que deveria ser, lançado originalmente em 1920.[36]
Em 1926, ao realizar o inquérito sobre a educação pública no Estado de São Paulo, Fernando de Azevedo arregimenta, como interlocutores do debate que propõe sobre a situação do ensino, intelectuais, segundo suas palavras, autoridades “[...] representantes de diversas correntes de pensamento pedagógico, conservadores e radicalistas, que era do maior interêsse fixar em um inquérito destinado a reproduzir fielmente a realidade social e cultural e as tendências ideológicas daquele tempo” (AZEVEDO, 1960, p. 19). Conforme Azevedo (1960),[37] o inquérito é um documento que testemunha um período de transição: de um lado, demonstra o apego ao passado e, de outro, a introdução no País de novas tendências educacionais, bem como o embate entre dois modelos, um que designa como tradicional e outro que intitula como moderno. Interessante ver nesse inquérito algumas das questões formuladas por Azevedo aos intelectuais convidados para debater sobre o ensino primário e normal.
Azevedo, na questão número seis, pergunta aos entrevistados se conseguiam responder sobre o verdadeiro papel que caberia à escola primaria em relação à formação do caráter nacional; na obra moderna de assistência social; no plano geral de Educação Física e na criação de hábitos higiênicos e, ainda, qual o papel da escola primária na iniciação profissional e de preparação para a vida. Os seis educadores são quase unânimes em responder que o papel da escola seria realizar o saneamento da sociedade, introduzindo hábitos higiênicos e a utilização do serviço de inspeção médica escolar com o objetivo de melhorar a saúde das novas gerações.
Responde o senhor Almeida Junior: “[...] no tocante à educação física, ou, de modo geral, à educação higiênica, a responsabilidade da escola primária é considerável, [... ] [uma vez que se deve] aproveitar a plasticidade da criança e a continuidade da escola, para formar hábitos de higiene, tão importantes, na educação primária, ‘como a língua e os números’” (AZEVEDO, 1960, p. 55). Mais à frente, Renato Jardim, ao responder à mesma questão, introduz mais uma referência. Conforme o professor, deveria a escola combater os defeitos da raça, o que seria feito por meio da ginástica, em sua modalidade ortopédica. Resposta bem próxima esboça José Escobar, para o qual a escola deveria agir como meio de eliminar a superficialidade e a preguiça ancestral, o que poderia ser conseguido com a adoção da ginástica, da higiene e da medicina, como meio de se obter a ortopedia da vontade. Pelo que já se argumentou, não causa curiosidade observar nas respostas dos entrevistados que o verdadeiro papel da escola primária, no plano geral de Educação Física, seria a criação dos hábitos higiênicos. Todos os respondentes remetem a discussão para a questão da saúde como o objetivo a ser alcançado pela prática das atividades da ginástica na escola.[38]
Como se percebe, saúde foi tema recorrente nos projetos de intelectuais de diferentes extrações, entrecortando discursos e circulando como representação de um Brasil por vir, para o qual todos deveriam se empenhar. Os meios para tanto passaram por descontinuidades, tanto em relação ao conteúdo como em relação à forma.[39]
Como foi visto, não existiu sempre uma continuidade em relação à forma de interpretar a questão nacional (o progresso do Brasil e o seu concerto com as nações desenvolvidas) e os modos de conduzir a sua solução. A descontinuidade é a marca que se evidencia em meio a uma mentalidade (para usar uma expressão que busca dar conta das permanências na história) que se ancora na longa duração.[40] Do mesmo modo, podem-se perceber os usos diferenciados que foram sendo produzidos para a noção de saúde e doença, que, na mentalidade dos intelectuais, sofreram mutações quanto às possibilidades de serem equalizadas, tanto nos discursos quanto em práticas de intervenção. Mas aqui é necessário perceber o discurso como prática de representação que amarra os sentidos do enunciado com os mecanismos de recepção, concedendo aos temas em voga aspectos de verdade inquestionável, ou seja, a sua naturalização.
As propostas de promoção da saúde por meio da escola, percebendo-se esta como instituição privilegiada para se aplicar um programa de intervenção intensivo e extensivo, estiveram sempre nos horizontes dos intelectuais que se organizaram em torno da revista Educação Physica, os quais a compreendiam como um instrumento biopsicossocial de transformação das energias latentes dos brasileiros em possibilidade de ação.
INTELLECTUALS, EDUCATION AND PHYSIACAL EDUCATION: A HISTORIOGRAPHICAL LOOK ABOUT HEALTH AND SCHOOL TEACHING IN BRAZIL
ABSTRACT: It projects a look about discursive production of intellectuals having different formations, like, Medicine, Law, Education and Physical Education, aiming at realizing the mutation of representations related to the interfaces between Education, Physical Education, School Teaching and Health with the development and modernization speech during the last two decades in the nineteenth century and the first four decades in the twentieth century in Brazil.
Keywords: Health; Physical Education; School teaching
INTELECTUALES, EDUCACIÓN Y EDUCACIÓN FÍSICA: UNA MIRADA HISTORIOGRÁFICA SOBRE SALUD Y ESCOLARIZACIÓN EN BRASIL
RESUMEN: Lanza una mirada sobre la producción discursiva de intelectuales de diferentes formaciones como, Medicina, Derecho, Educación y Educación Física con la finalidad de percibir las mutaciones de las representaciones relacionadas a las interfaces entre Educación, Educación Física, Escolarización y Salud con el discurso de desarrollo y de la modernización entre las dos décadas finales del siglo XIX y las cuatro décadas iniciales del siglo XX en Brasil.
Palabras-clave: Salud; Educación Física; Escolarización
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Recebido: 29 set. 2005 Avaliado: 23 nov. 2005
[1] Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe. Membro do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física (PROTEORIA).
[2] Professor do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo; coordenador do PROTEORIA.
[3] Para Paulo Prado, da união luxuriosa do português com os indígenas e com os negros, teria nascido o brasileiro. Conforme o autor, foi do contato da “[...] sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu [que] surgiram nossas primitivas populações mestiças. Terras de todos os vícios e todos os crimes” (1997, p. 76).
[4] Conforme Dutra (2000, p. 236), é na efervescência da década de 1920, em que “[...] ser modernista significava ser desmistificador, polêmico, inconformista, autêntico, [... ] [em que o lema era] deixar falar mais alto a vontade de integrar o Brasil e a cultura brasileira no concerto civilizatório [...]”, que a obra de Paulo Prado é escrita.
[5] Para compreender as representações relacionadas com o movimento sanitarista do início do século XX e sua proposta de saneamento do imenso território nacional, uma leitura necessária são os escritos de Lima e Hochmam (1996) sobre o pensamento médico e as incursões realizadas ao interior durante a Primeira República, a fim de se obter o conhecimento empírico do Brasil.
[6] Conforme Revel e Peter (1988 p. 144), a representação relacionada com a “[...] doença é quase sempre um elemento de desorganização e de reorganização social; a esse respeito ela torna freqüentemente mais visíveis as articulações essenciais do grupo, as linhas de força e as tensões que o transpassam. O acontecimento mórbido pode, pois, ser o lugar privilegiado de onde melhor observar a significação real de mecanismos administrativos ou de práticas religiosas, as relações entre os poderes, ou a imagem que a sociedade tem de si mesma”.
[7] Uma leitura necessária para se compreender as teorias que buscaram, em fins do século XIX e início do século XX, hierarquizar as raças humanas a partir do cálculo das características físicas é o estudo de Gould (1999), intitulado como A falsa medida do homem. Nesse livro, o autor aborda os testes que foram desenvolvidos por médicos com base no estudo da Anatomia e Antropometria para construir boa parte das teorias racistas que serviram de justificativas para se afirmar o que era normal e o que era patológico na conduta humana.
[8] Conforme Cavalcanti Netto (1983, p. VI), “A certa altura, nenhuma pessoa de alguma cultura poderia ignorar Lombroso. Sua teoria revolucionaria todo o pensamento médico e jurídico de uma época. E o mundo, extasiado, perplexo, se prostrou aos pés do iluminado”.
[9] Para Lombroso, ao se analisar as características físicas de um indivíduo, poder-se-ia perceber que “[...] em geral, o delinqüente nato tem orelhas de abano, cabelos abundantes, barba escassa, os senos frontais e as mandíbulas enormes, queixo quadrado e proeminente, zigomas aumentados, a gesticulação freqüente, em suma um tipo parecido com o mongol, às vezes com o negro” (LOMBROSO, 1983, p. 168).
[10] De acordo com Schwarcz (1995), foi grande a utilização das proposições de Lombroso no meio acadêmico, principalmente do Dreito, em áreas dedicadas ao estudo da criminologia.
[11] Para Marques (1994, p, 88), “[...] a tarefa de ‘aryanização’ da raça ficava facilitada com a vinda de estrangeiros já que a população tornar-se-ia branca, sem que, para isso, as elites corressem o risco de perder seus pedigree. Mesmo sendo considerados socialmente inferiores, os imigrantes contribuíram para o ‘clareamento dos brasileiros” (grifo da autora).
[12] De acordo com Leite (1992, p. 190), Silvio Romero, ao considerar as características psicológicas do povo brasileiro, apontava o seu estado “‘ [...] apático, sem iniciativa, desanimando’; na vida intelectual, imitação do estrangeiro”.
[13] Marques (1994, p. 87), ao comentar sobre as políticas de imigração do final do século XIX e início do século XX, informa que era corrente no imaginário dos médicos ligados às idéias eugênicas que “[...] nenhum paiz precisa mais de melhorar a sua raça do que o Brasil e, como elle hoje se curva para si próprio, interessando-se pelos seus problemas vitaes de toda a ordem, serão beneméritos todos os esforços por uma cruzada pro-melhoramento da espécie”.
[14] Para uma leitura a respeito dos projetos abolicionistas e do medo de suas conseqüências para a organização do Brasil, ver o livro de Azevedo (1987) Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Já para compreender os fundamentos das teses racistas a respeito da superioridade do europeu e do medo causado pelas teses abolicionistas, ver o estudo desenvolvido por Marques (1994), designado como A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico.
[15] Já não era possível contar com as levas de imigrantes europeus, modo mais fácil de mudar as características raciais dos brasileiros, transmutando de um povo amorfo para uma sociedade com identidade racial definida pela brancura da pele, sinônimo de civilização e modernidade. Agora a fórmula ou tendência era apresentar o brasileiro como essencialmente bom, vítima, porém, da falta de educação (COUTO, 1994).
[16] De acordo com Carvalho (2003, p. 14), “Regenerar as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas, eis o que se esperava da educação, erigida nesse imaginário em causa cívica de redenção nacional. Regenerar o brasileiro era dívida republicana a ser resgatada pelas novas gerações” (grifo da autora).
[17] Quando a aposta racista no branqueamento da população como efeito do processo imigratório se desmistifica, “organizar o trabalho nacional” com o concurso da escola passa a ser prioridade política. É,
assim, que a escola começa a se impor no horizonte ideológico das elites políticas e intelectuais, como recurso consistente de incorporação generalizada das populações à ordem social e econômica.
[18] O espetáculo da doença nas notícias das expedições de Manguinhos teatraliza, em seu próprio movimento, o mal nacional e o remédio para saná-lo, indiciando, também, uma mutação importante nas representações por meio das quais a intelectualidade brasileira formulava a questão nacional e os meios de equacioná-la. Constituir a saúde (e a educação) como problema nacional funcionou como espécie de exorcismo de angústias alimentadas por doutrinas deterministas que, postulando efeitos nocivos da miscigenação racial e do clima, tornavam infundadas as esperanças de progresso para o Brasil, país de mestiços sob o trópico. Para os novos intérpretes do Brasil que entram em cena nos anos 20, as teorias racistas que, desde o século anterior, constituíam a linguagem pela qual era formulada a questão nacional, são, assim, relativizadas por uma nova crença: a de que saúde e educação eram fatores capazes de operar a regeneração das populações brasileiras (CARVALHO, 1997).
[19] De acordo com Carvalho (1997), hierarquizar a humanidade com base em teorias raciais e o discurso da degeneração era operação que vinha sendo realizada desde o final do século XIX, constituindo-se na linguagem principal dos intelectuais brasileiros.
[20] Conforme Carvalho (1998, p. 141), no discurso produzido no âmbito da ABE, podia-se perceber que a educação configurava-se como a chave mágica que poderia viabilizar a passagem do pesadelo para o sonho. Para a autora, o discurso educacional que se produz tinha como objetivo o “[...] apagamento do presente e a produção de imagens de um futuro grandioso. Nela, a figura de um brasileiro doente e indolente, apático e degenerado, perdido na imensidão do território nacional - Jeca Tatu, em cuja representação exemplar confluem determinismos cientificistas de ordem várias - representa, alegoricamente, a realidade lastimada. Afirmar a importância da educação era, muitas vezes, espécie de exorcismo de angústias alimentadas por doutrinas deterministas que, postulando efeitos nocivos do meio ambiente ou da raça, tornariam infundadas as esperanças de progresso para o Brasil, país de mestiços sob o trópico”.
[21] Ao discutir sobre a questão racial no Brasil, Schwarcz (1995) informa uma mutação no discurso dos intelectuais brasileiros. Relatando o caso da Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, descreve a autora (1995) que, até o final da década de 1920, o discurso que relegava todos os problemas envolvidos na possibilidade de o Brasil integrar o concerto das nações desenvolvidas, constituindo-se como problemas exclusivos da raça, passa a ser questionado. De acordo com Schwarcz (1995, p. 168), no final da década de 1920, “[...] higiene, saúde e educação se transformam nos grandes temas [...]” debatidos pelos intelectuais que se organizam na Faculdade de Direito do Recife.
[22] Ver artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n. 2, em 2004, intitulado Entre a correção e a eficiência: mutações no significado da Educação Física nas décadas de 1930 e 1940: um estudo a partir da revista Educação Physica.
[23] As décadas de 1930 e 1940 são momentos em que o brasileiro passa a ser percebido de um modo diferente. Organizam-se as paradas da raça e manifestações cívicas materializadas no movimento Juventude Brasileira que, apesar de serem manifestações políticas organizadas pelo Estado, revelam também um ufanismo, um orgulho patriótico não percebido de forma tão intensa nas décadas anteriores. Para uma análise do desenvolvimento e objetivos do movimento Juventude Brasileira, ver o livro O Hino, o sermão e a ordem do dia: a educação no Brasil (1930-1945) de Horta (1994), que possui um capítulo dedicado a esse
tema. Ver também o livro Tempos de Capanema de autoria de Schwartzman, Bomeny e Costa (2000), principalmente entre as páginas 139 e 156, em que se trata d’A Organização Nacional da Juventude.
[24] “[...] o conceito de degeneração [...] [refere-se] a um desvio mórbido que reduziria o homem a um tipo primitivo, com a característica essencial de transmitir por herança [à sua prole a perda da qualidade da espécie]” (COUTO, 1994, p. 53). Perda ou alteração (no ser vivo) das qualidades de sua espécie, mudança para um estado pior; decaimento ou declínio.
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[25] De acordo com Bizzo (1995), na década de 1930, o assunto passou a ser obrigatório nos cursos de magistério, pois se compreendia que a formação do caráter e da vontade é conseqüência direta da disciplinarização do corpo.
[26] Ver o catálogo de periódicos produzidos pelos pesquisadores do PROTEORIA, no qual estão organizados
36 periódicos sobre Educação Física que circularam no Brasil de 1932 a 2000.
[27] Na revista de Educação Physica, muitas são as matérias que encaminham prescrições sobre como criar um novo tipo para o brasileiro, aconselhando, propondo rotinas de exercícios, modelos de ginásticas corretivas, aparelhos para ganho de força, alimentos, remédios e tônicos regeneradores, assim como tratamentos para alcançar as formas perfeitas. Do mesmo modo, muitas são as imagens que, veiculadas no periódico, buscam exemplificar um tipo ideal de corpo, criar um padrão de simetria corporal e o ideário de quais formas condiziam ou representavam um modelo de saúde e beleza moderna.
[28] A estética grega com suas figuras perfeitas é amplamente veiculada na revista Educação Physica. As poses estilizadas retratando a harmonia das formas procuram educar o olhar do leitor, instigam ao movimento, à busca da saúde e a um modo esportivo de vida.
[29] A estética grega e um modo de vida esportivo eram os objetivos a serem alcançados. O projeto de uma juventude dinâmica era uma das preocupações que moviam os editores do periódico. Intimamente ligadas aos ideais eugenistas, as prescrições a respeito de um corpo saudável valiam-se da Educação Física e dos esportes como meio de atingir a perfeição das formas.
[30] Professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e criador da Sociedade Eugênica de São Paulo em 1918. Publicou no periódico quatorze matérias.
[31] De acordo com Bizzo (1995, p. 45), esse tipo de compreensão do que poderia fazer a eugenia estava em “[...] total desamparo da ciência, notadamente da Genética. As propostas eugênicas, naquela altura, não possuíam mais fundamentos científicos, pelo contrário, baseavam-se nas sensações comuns, nos aspectos ‘óbvios’ da ‘degeneração racial’, no logicismo mais rasteiro e evidente”.
[32] Couto (1994, p. 53), ao discutir sobre a eugenia no Brasil, ou pelo menos o modo como foi interpretada e discutida por Renato Kehl, diz que, para esse autor, tal “ciência” assume contornos bem particulares. Para ele, “[...] a Eugenia considera beleza a normalidade; normalidade esta, somática, física e moral”.
[33] Durante o período em que a Revista circulou, essa mesma matéria é veiculada seis vezes. Ela é a única que por tantas vezes é reeditada, demonstrando que os editores, de certa forma, concordavam com as idéias que por ela eram explicitadas. A matéria que apresenta as características físicas do novo homem que se espera produzir foi veiculada nos seguintes números: 4 (1934); 9 (1937); 13 (1937); 25 (1938); 32 (1939) e 73 (1943).
[34] As discussões sobre o tipo ideal que deveria ser desenvolvido por meio da Educação Física, como descrito pelos editores, como um homem com talhe mais delgado que grosso, gracioso, de musculatura flexível, olhos claros, pele sã, etc., não foi discurso que ficou restrito apenas ao universo de prescrições do periódico. Esse referencial de como deveria ser a constituição física e psicológica do novo homem a se formar aparece citado por Guiomar Meirelles Becker, na introdução de um livro de sua autoria, em 1942, na cidade de Belo Horizonte, com o título de Educação física infantil.
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[35] Conforme Hollanda Loyola, seria para a infância que se deveria voltar a atenção, uma vez que seria nesse período da vida que [...] a intervenção da educação física, visando o aperfeiçoamento físico e moral do individuo e o melhoramento da raça, se processa com maior êxito (LOYOLA, 1940, p. 37).
[36] Também é interessante ver a tese de Vago (1999) e a leitura que faz sobre as reformas do Ensino Primário em Minas Gerais, sobre a compreensão que os reformadores mineiros possuíam dos exercícios físicos (ginástica) como recurso higiênico e sobre o momento em que uma nova cultura escolar começa a ganhar corpo nos discursos dos intelectuais da educação e nas práticas realizadas nas escolas primárias públicas de Belo Horizonte, nas duas primeiras décadas do século XX. Conforme Vago (1999, p. 293), “[...] o movimento de afirmação social [... ] [de uma] nova cultura escolar mobilizou diferentes dispositivos [... ] [que visavam a] operar uma transfiguração [... ] [dos] corpos, moldando-os segundo padrões estéticos considerados adequados aos cidadãos republicanos”.
[37] O inquérito sobre a educação pública no Estado de São Paulo foi publicado originalmente em 1926, ano em que circulou nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, depois publicado em 1937, com o título de A educação pública em São Paulo. Em 1960, ao ser reimpresso, recebe o nome de A educação na encruzilhada: problemas e discussões.
[38] Na empreitada de produzir uma juventude, moral e fisicamente disciplinada, os editores da Revista não estavam sozinhos. Como analisam alguns autores (HORTA, 1994; SCHWARTZMAN et al., 2000) que discutem política, educação e o Governo de Getúlio Vargas, muitos foram os investimentos que, nas décadas de 1920, de 1930 e de 1940, tiveram por objetivo o controle do campo educacional, no qual se incluía a disciplina Educação Física. Ao Estado coube, de forma mais intensa, propagar o discurso sobre a possibilidade de melhoria das condições biotipológicas por meio da educação do corpo.
[39] A revista Educação Physica apresenta-se como síntese dos projetos elaborados, no plano da discursividade, mas também no plano das ações práticas, em relação aos meios de produzir no Brasil uma sociedade em que transparecessem os ideais de modernidade. Nota-se que, na impossibilidade de empregar no Brasil o programa de regeneração da raça nos moldes propostos por Galton, pelo simples fato de não existir uma espécie padrão a se regenerar, as propostas fundamentavam-se mais em um eugenismo estético, transparecendo nas páginas da revista Educação Phyisca ideais tipo lombrosianos em que a normalidade anatômica possuía relação direta com a normalidade de caráter/personalidade.
[40] Conforme Vainfas (1997, p. 134), a longa duração é “[...] um conceito caríssimo à concepção de mentalidade, concebida como estruturas de crenças e comportamentos que mudam muito lentamente, tendendo por vezes à inércia e à estagnação”.